Conforme notícias publicadas em diversos sites, em razão de requerimento do Ministério Público de São Paulo, a autoridade judicial da Vara Criminal de São Bernardo do Campo determinou, no âmbito de processo de investigação criminal, a suspensão do aplicativo WhatsApp (sob o controle da empresa Facebook, sediada nos EUA), pelo prazo de 48 h (quarenta e oito horas), por todo o território brasileiro.
As empresas de telecomunicações foram intimadas a respeito do cumprimento da decisão judicial, para suspender o aplicativo WhatsApp. Segundo informações de sites de notícias, a motivação da decisão judicial decorreria do fato de o WhatsApp não ter cumprido determinação judicial por duas vezes, inclusive foi fixada multa pelo descumprimento da ordem judicial. Diante da recusa do WhatsApp em cumprir ordem da Justiça, é que houve o pedido de bloqueio do Whatsapp formulado pelo Ministério Público.
As empresas de telecomunicações não são autoras da ações, nem rés. Porém, porém ficaram com o encargo de cumprir a determinação judicial, pois, o WhatsApp funciona a partir das redes de telecomunicações.
O processo judicial tramita em segredo de justiça e, segundo consta em sites, o pedido do Ministério Público foi fundamentado no Marco Civil da Internet. Portanto, embora não se saiba exatamente os fundamentos jurídicos utilizados em razão do segredo de Justiça, o caso merece a adequada análise jurídica diante da repercussão nacional.
Em liminar no Mandado de Segurança 2271462-77.2015.8.26.0000, na data de 17.12.2015, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Rel. Xavier de Souza, da Décima Primeira Câmara de Direito Criminal, deferiu liminar requerida pela empresa WhatsApp suspender os efeitos da decisão judicial que suspendia temporariamente as atividades do aplicativo. Segundo o Relator Xavier de Souza: “Sob este aspecto, em face dos princípios constitucionais (proporcionalidade), não se mostra razoável que milhões de usuários sejam afetados em decorrência da inércia da impetrante, mormente quando não esgotados outros meios disponíveis para a obtenção do resultado desejado”.
Algumas considerações jurídicas a seguir apresentadas.
O Marco Civil da Internet, aprovado pela Lei n. 12.965/2014, estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Esta lei é aplicável aos provedores de acesso à internet (empresas de telecomunicações) e os provedores de aplicativos de internet (como é o caso do WhatsApp, que oferece um serviço de troca de mensagens conhecido como OTT – Over the Top).
Pois bem, a Lei n. 12.965/2014 trata da proteção aos registros, aos dados pessoais e comunicações privadas. Assim, o provedor responsável pela guarda de dados pessoais e comunicações pode ser obrigado a disponibilizar os registros de conexão e de acesso a aplicações de internet para identificação do usuário ou terminal, mediante ordem judicial, conforme dispõe o art. 10, § 1º. O conteúdo das comunicações privadas somente pode ser disponibilizado mediante ordem judicial nas hipóteses legais. Ou seja, são garantidas a inviolabilidade e o sigilo do fluxo das comunicações pela internet, bem como a inviolabilidade e sigilo das comunicações privadas armazenadas, excetuada a hipótese do afastamento da inviolabilidade por ordem judicial, conforme determina o art. 7º, incs. II e III, da referida lei n. 12.965/2014.
O art. 11 do Marco Civil da Internet prevê que em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que, pelo menos, um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e do registros. Esta regra legal aplica-se aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil.[1] Também, a regra aplica-se as atividades realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos um integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.[2]
O Marco Civil da Internet, no art. 12, ao tratar da proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, estabelece que, sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções aplicadas de forma isolada ou cumulativa: advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas, multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11 ou proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11. Além disto, caso se trate de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento de multa a sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.[3]
Aqui, o ponto central da questão jurídica. O Marco Civil da Internet em seu art. 12, incs. III e IV, admite como sanções a suspensão temporária das atividades das empresas que ofertam aplicações de internet e a proibição de exercício das atividades destas empresas. Mas, estas sanções de suspensão temporária e proibições previstas no Marco Civil da Internet são aplicáveis somente na hipótese das operações de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet. Ou seja, somente na hipótese de grave descumprimento de legislação brasileira de proteção aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros é que seria possível a aplicação das sanções de suspensão temporária e proibição das atividades em território nacional. A finalidade da norma legal é – registre-se – evidentemente a proteção dos direitos fundamentais à privacidade, proteção dados pessoais e sigilo das comunicações.
Para aplicar estas sanções gravíssimas do Marco Civil da Internet em relação às empresas privadas, é necessária que a infração esteja devidamente caracterizada. Daí porque, ao que parece, o descumprimento de ordem judicial no processo criminal pela empresa WhatsApp não é por si só fundamento suficiente para aplicar a sanção da suspensão temporária das atividades conforme prevê o inc. III, do art. 12, do Marco Civil da Internet. Além deste dispositivo legal, não há nenhum outro fundamento que autorize a prática da suspensão temporária dos aplicativos de internet.
Com o devido respeito, a medida judicial de suspensão temporária das atividades do WhatsApp quebra o princípio da proporcionalidade e razoabilidade. A decisão judicial ainda causa lesão a milhões de consumidores brasileiros, prejudicando o direito fundamental à comunicação das pessoas. Segundo informações de sites, no Brasil há mais de 100 (cem) milhões de brasileiros usuários do aplicativo WhatsApp. Não é admissível que a decisão em procedimento judicial imponha ônus a pessoas que não estão ligadas à investigação criminal, como bem destacou a liminar no Mandado de Segurança, do TJ/SP, acima citado.
Além disto, especificamente, o Marco Civil da Internet ao tratar da guarda de registros de acesso a aplicações de internet na provisão de aplicações prevê que a autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso à aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior a seis meses, mas o requerimento deve ser precedido de autorização judicial, conforme dispõe art. 15, § 1º, § 2º e § 3º. Ou seja, é da responsabilidade do provedor de aplicações de internet a guarda dos dados pessoais, em prazo superior ao estabelecido em lei, desde que requerido pela autoridade judicial, a pedido da autoridade policial ou Ministério Público. Evidentemente que eventual descumprimento deste dispositivo legal não ocasiona a suspensão temporária dos aplicativos para todos os usuários.
Enfim, é dever da empresa que faça oferta aplicativos no território brasileiro colaborar com a Justiça, atendendo os requerimentos devidamente fundamentados juridicamente, conforme a legislação, na hipótese de quebra por ordem judicial do direito à inviolabilidade e sigilo das comunicações pela internet e as comunicação privadas armazenadas. Eventualmente, questões técnicas podem justificar o não cumprimento de decisão judicial, algo a ser explicado à Justiça. Boas práticas empresariais recomendam a lealidade e boa-fé no atendimento à ordens judiciais.
Ressalte-se que a hipótese de descumprimento de ordem judicial configura crime desobediência, conforme prevê o art. 330 do Código Penal. Daí inclusive o fundamento para impetração de habeas corpus em favor de diretor-presidente da OI/SA. Portanto, a advertência do cometimento do crime de desobediência no caso do WhatsApp é uma medida mais adequada e razoável, ao invés da suspensão temporária do aplicativo em todo o território nacional.
Em síntese, com base no Marco Civil da Internet, não é possível aplicar a gravíssima sanção da suspensão temporária da atividade da empresa que fornece o aplicativo WhatsApp, eis que não razoável e proporcional à conduta de descumprimento à ordem judicial. A medida judicial imposta causa lesão ao direito fundamental à comunicação de mais 100 (cem) milhões de brasileiros. Não é admissível que um caso individual, que relevante sob a ótica da investigação criminal, prejudique milhões de pessoas. Daí o acerto da decisao do TJ/SP no mandado de segurança acima referido em afastar os efeitos da decisão de suspensão do aplicativo WhatsApp. Enfim, a jurisdição brasileira agiu prontamente para restaurar e adequada interpretação do princípio constitucional da razoabilidade e da legislação aplicável ao caso. Ao final, espera-se o julgamento do mérito do caso com análise atenta e profunda do Marco Civil da Internet.
[1] Art.111,§ 1ºº, da Lei n.12.9655/2014.
[2] Art.111,§ 2ºº, da Lei n.12.9655/2014.
[3] Art.122,parágrafo únicoo, da Lei n.12.9655/2014.
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