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Acordo de Cooperação internacional entre a jurisdição brasileira e a norte-americana: análise da constitucionalidade do decreto federal 3.810/01

18/12/2017

Na ação declaratória de constitucionalidade (Adcon 51) referente ao decreto 3.810/01 é ilustrativo da complexidade das questões relacionadas ao exercício da jurisdição nacional, bem como da aplicação da lei brasileira, no âmbito da plataforma da internet e das empresas de tecnologia provedoras de aplicações de internet, sediadas no exterior.

A Federação das Associações das empresas de tecnologia da informação – ASSESPRO NACIONAL ingressou no Supremo Tribunal Federal com ação declaratória de constitucionalidade (Adcon 51) do decreto 3.810/11. Este decreto federal promulgou o Acordo de Assistência Judiciário-penal entre o Brasil e os Estados Unidos da América –Mutual Legal Assistance Treaty.1

Alega-se que as autoridades jurisdicionais brasileiras deixaram de aplicar o referido decreto, na medida em que requisitam provas, dados e informações às empresas de tecnologia, sendo que os dados encontram-se armazenados em data center localizados nos EUA, sem observar o procedimento de expedição de cartas rogatórias pelo Poder Judiciário. Nos termos do referido decreto, é necessária a expedição de carta rogatória, para fins de requisição de documentos, provas, informações, localizados em território estrangeiro.

Esta não aplicação do decreto 3.810/2011 pelos próprios tribunais brasileiros cria sérios problemas para as empresas de tecnologias e que exploram o segmento de redes sociais, bem como para os provedores de aplicações de internet.

E, se deixarem de cumprir ordens judiciais de requisição de documentos/dados podem ser sancionadas com pesadas multas. Há também o o risco de investigação/processo penal para responder pelo crime de desobediência, inclusive o risco de prisão do dirigente da empresa.

Das comunicações privadas: a proteção constitucional ao direito fundamental à privacidade da comunicação

Constituição do Brasil contém sólidas garantias às comunicações privadas. Em destaque, a garantia da inviolabilidade do sigilo de dados, excetuada a hipótese de quebra do sigilo da comunicação na forma legal, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.2 Ou seja, a legislação infraconstitucional (Código de Processo CivilCódigo de Processo Penal e Marco Civil da Internet) relativa à obtenção de prova, informação e dados, diante das empresas de aplicações de internet, deve ser interpretada na perspectiva da maximização dos efeitos desta garantia constitucional.

O Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal: a cooperação internacional no exercício da jurisdição

O Código de Processo Civil dispõe que será expedida carta rogatória, para que o órgão jurisdicional estrangeiro pratique ato de cooperação jurídica internacional, relativo a processo em curso perante órgão jurisdicional brasileiro, no seu art. 237, inc. II.

Por sua vez, o Código de Processo Penal dispõe que sem prejuízo de convenções ou tratados, aplicar-se-á o disposto neste título à homologação de sentenças penais estrangeiras e à expedição e ao cumprimento de cartas rogatórias para citações, inquirições e outras diligências necessárias à instrução de processo penal”, conforme seu art. 780. Também, o art. 783 do Código de Processo Penal dispõe que as cartas rogatórias serão, pelo respectivo juiz, remetidas ao ministro da Justiça, a fim de ser pedido o seu cumprimento, por via diplomática, às autoridades estrangeiras competentes.

Diante deste contexto normativo é que está situado o decreto 3.810/2001 que trata do Acordo de Assistência Judiciária em matéria penal entre o Brasil e os Estados Unidos.

O decreto 3.810/01: status de lei

O decreto federal em análise tem formalmente a natureza de lei, daí a sua eficácia sobre as autoridades jurisdicionais brasileiras. Trata-se de ato de incorporação no direito brasileiro do acordo internacional entre o Brasil e os EUA, celebrado no âmbito da cooperação internacional. No procedimento simplificado para requisição de dados, informações, documentos há a previsão do instrumento das cartas rogatórias, expedidas pelo Poder Judiciário, e cumpridas mediante a colaboração dos agentes diplomáticos.

Provedores de Aplicações de Internet: o Marco Civil da Internet

Conforme o Marco Civil da Internet (art. 10, §1º), bem como o decreto de sua regulamentação, dados cadastrais e registros de acesso devem ser apresentados pelos provedores de aplicações de internet, se devidamente solicitados pelas autoridades brasileiras, independentemente de ato de cooperação internacional. Mas, na hipótese de conteúdo da comunicação privada não há esta autorização legal para requisição direta pela autoridade jurisdicional brasileira. Cumpre destacar que o regime jurídico dos provedores de aplicações de internet é diferente do regime dos provedores dos serviços de conexão à internet, conforme distinção efetuada no próprio Marco Civil da Internet.3

Modelo de negócios dos provedores de Aplicações de Internet

As empresas provedoras de aplicações de internet (tais como: Google, Facebook, WhatsApp, Twitter, etc), que armazenam e coletam as comunicações privadas dos brasileiros, não possuem, via de regra, data center em território nacional. Elas limitam-se à utilização da infraestrutura de redes de telecomunicações local. Mas, o conteúdo das comunicações privadas encontra-se no exterior, armazenados em data center.

Ora, a localização do data center integra o modelo de negócios dos provedores de aplicações de internet, por razões estratégicas e econômicas e por razões de segurança dos dados, bem como da arquitetura da rede.

Daí porque eventual lei brasileira que venha a impor a construção de data center no Brasil para fins de oferta de aplicações de internet poderia ser questionada quanto à sua constitucionalidade, especialmente diante da garantia constitucional da livre iniciativa.

Neste aspecto, cumpre destacar a fundamentalidade da proteção à privacidade e à confidencialidade das comunicações privadas, como parte integrante do modelo de negócios das empresas de tecnologia que são provedoras de aplicações de internet. A garantia da segurança e proteção aos dados pessoais, bem como o conteúdo das comunicações privadas, é essencial ao modelo de negócios destas empresas de tecnologia. A sua valorização no mercado depende da adequada proteção às comunicações privadas dos usuários das aplicações de internet; da expectativa e confiança depositada pelo usuário na proteção à confidencialidade das comunicações privadas.

Soberania brasileira: autodelimitação por acordo internacional de cooperação judiciária

No caso em análise, se o Brasil assinou o acordo de cooperação de assistência judiciário em matéria penal com os EUA, que prevê o procedimento de expedição da carta rogatória pelo Poder Judiciário, então está obrigado a respeitar este ato de cooperação internacional, na forma do decreto 3.810/01, enquanto em vigor no ordenamento jurídico brasileiro.

Entretanto, os tribunais brasileiros estão a negar a aplicação ao decreto 3.810/01, em destaque o próprio Superior de Justiça4, sob o fundamento do princípio da soberania nacional. Ora, se há discordância quanto à validade do referido decreto, então a melhor solução jurídica seria a declaração de sua inconstitucionalidade pelos tribunais.

Ao que parece, o argumento da violação do princípio da soberania não é suficiente para justificar o afastamento do decreto federal e impor constrangimentos indevidos às empresas de tecnologias estrangeiras, sediadas no exterior. Ao contrário, este tipo de interpretação da legislação implica na afronta à soberania do Estado estrangeiro, responsável final por requisitar provas, dados e informações, à empresa situada em seu território.

Segurança Jurídica e Devido Processo Legal: o procedimento da carta rogatória, para fins de obtenção de prova em investigação policial e/ou instrução penal

A requisição direta por autoridade judicial brasileira de provas/informações, para fins de investigação penal e/ou instrução penal, em relação à empresa provedora de aplicação de internet, sem a observância do rito da expedição da carta rogatória pelo Poder Judiciário, viola os princípios do devido processo legal, bem como da segurança jurídica.

Isto porque se a própria legislação brasileira define o rito de colaboração entre a jurisdição nacional e a estrangeira, na forma do decreto 3.810/2001, então as autoridades nacionais estão vinculadas ao cumprimento da lei brasileira.

Validade da Prova: investigação penal/instrução penal

Ora, segundo a Constituição Federal, a produção da prova há de ser válida, para efeitos de investigação criminal. Textualmente, a Constituição dispõe que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos, em seu art. 5º, inc. LVI.

Daí porque se não observado o decreto n. 3.810/2001, na coleta de prova perante empresa de tecnologia estrangeira, com sede no exterior, mediante o rito da carta rogatória, há o risco de nulidade na desta produção de prova, em investigação policial e/ou instrução penal.

Conclusão final

Em síntese, na ação declaratória de constitucionalidade (Adcon 51) referente ao decreto 3.810/01, que aprova o Acordo de Assistência Judiciária em matéria penal, entre o Brasil e os Estados Unidos, ora em trâmite no Supremo Tribunal Federal, é ilustrativo da complexidade das questões relacionadas ao exercício da jurisdição nacional, bem como da aplicação da lei brasileira, no âmbito da plataforma da internet e das empresas de tecnologia provedoras de aplicações de internet, sediadas no exterior.

Em destaque, a cooperação internacional entre a jurisdição brasileira e a norte-americana, para fins da aplicação da lei brasileira, para fins de cumprimento de ordens judiciais em investigação policial e/ou instrução penal (coleta de dados/provas), em relação aos usuários de aplicações de internet, que se valem dos serviços das empresas de tecnologia estrangeiras, situadas no exterior.
________________

1
 O acordo de Assistência Judiciária em matéria penal entre o Brasil e os EUA, nos termos do Decreto n. 3.810/2001, abrange as seguintes medidas: tomada de depoimentos ou declarações de pessoas; fornecimento de documentos, registros e bens, localização ou identificação de pessoas ou bens, entrega de documentos, transferência de pessoas sob custódia para prestar depoimento, execução de pedidos de busca e apreensão, assistência relacionada à imobilização e confisco de bens, restituição, cobrança de multas, etc.

2 Constituição do Brasil, art. 5º, inc. XII.

3 Ver: Ericson M. Scorsim. Direito das Comunicações. Telecomunicações, Internet, TV por radiodifusão e TV por assinatura. Edição do Autor. Curitiba: Amazon, 2016.

4 Casos de não aplicação do Decreto n. 3.810/2001 pelo STJ, RMS 44892/SP, 2010, Rel. Min. Ribeiro Dantas, data julgamento 05/04/2016, RMS 466685/MG, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador Convocado do TJ/PE), publicação 06/04/2015.

Artigo publicado no Portal Jurídico Migalhas em 18/12/2017.