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Big techs, poder geocultural, eletronic surveillance e national intelligence dos Estados Unidos: impacto sobre o Brasil

08/02/2021

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito Regulatório das Comunicações. Doutor em Direito pela USP. Autor do livro O jogo geopolítico entre Estados Unidos e China; impacto no Brasil.

Os Estados Unidos é o berço denominado Vale do Silício, local sede de empresas globais de tecnologia. O domínio da ciência e tecnologia é uma das caraterísticas da liderança global norte-americana. Assim, as Big Techs servem à geoestratégia dos Estados Unidos em sua liderança global, com a preservação de sua superioridade tecnológica.

A propósito, os Estados apregoam o liberalismo para outros países (em defesa da exportação de seu capital e dólar), porém em seu âmbito doméstico adotam medidas protecionistas, especialmente no setor de tecnologia de informação e comunicações e telecomunicações. Sobre este aspecto, o autor Samuel P. Huntington ao explicar o predomínio das nações ocidentais, no caso evidentemente aqui incluído os Estados Unidos, elenca os seguintes atributos de um país hegemônico: “own and operate the international banking system, control all hard currencies, are the world’s principal customer, provide the majority of the world’s finished goods, dominant international capital markets, exert considerable moral leadership within many societies, are capable of massive military intervention, control the sea lanes, conduct most advanced technical research and development, control leading edge technical education, dominant acess to space, dominant the aerospace industry, dominate international communications, dominant the high-tech weapons industry”.

Acrescento para atualizar esta lições o domínio dos Estados Unidos sobre a conectividade por redes de comunicações,  infraestrutura digital, inteligência artificial, computação quântica e a cadeia de suprimentos de semicondutores.[1]  Com a evolução da tecnologia surgiram as denominadas Big Techs, empresas com atuação global. Dentre elas: Google, Facebook, Microsoft, Amazon, Apple, SpaceX, Blue Origin. Os modelos de negócios destas empresas de tecnologia são diversos. O Google encontra-se no ramo de buscas online (mediante um sistema sofisticado de algoritmos) e publicidade online. A empresa é proprietária ainda da plataforma de vídeos Youtube. O Google tem investimentos em redes de cabos submarinos para o escoamento do tráfego de dados. Há cabos submarinos interligando os Estados Unidos à Taiwan, na Ásia. Google tem ainda investimentos no setor de saúde.

A entrada do Google no Brasil provocou mudanças intensas no mercado de mídia e de publicidade. Por outro lado, o Facebook está no segmento de publicidade online.  É proprietário do Whatsapp, aplicativo de mensagens online e do Instagram.  A Microsoft atua no setor de software, computação em nuvem (Azure), entre outros. Recentemente, anunciou investimento em uma empresa fornecedora de software para a tecnologia de 5G. A Amazon é uma plataforma de comércio eletrônico (e-commerce) e fornecedora de serviços de computação em nuvem (cloud computing). É denominada marketplace, uma plataforma que agrega os vencedores aos compradores de produtos e serviços. Também, seu proprietário é investidor da Blue-Origin, empresa de tecnologia aeroespacial. Além disto, a Amazon tem contratos  com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos para o fornecimento de serviços de computação em nuvem.   A Amazon em seus centros de distribuição logística utiliza redes de 5G e uma equipe de robôs para despachar suas mercadorias. A Apple atua no setor computadores, telefones, notebooks, entretenimento, entre outros.

Em caso sintomático, a empresa foi requisitada a colaborar com o FBI em caso de quebra de criptografia do iphone. Mas, a empresa se recusou a colaborar, invocando a proteção à segurança das comunicações dos usuários. O Twitter é empresa que oferece o serviço de mensagens online. Também, a empresa tem sido utilizada em campanhas de desinformação online. Por isso, ela adotou mecanismos para filtrar conteúdos falsos.  Em comum, estas empresas de tecnologia surgiram no contexto da internet. os investimentos intensos em inteligência artificial. Também, como pontos de semelhança, a colaboração com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos.

 Big techs e o Pentágono: o acesso à inteligência artificial

Há o debate nos Estados Unidos a respeito do poder econômico das Big Techs: Amazon, Google, Apple e Facebook, na perspectiva antitrust. Autoridades norte-americanas desconfiam que as Big Techs abusam de seu poder dominante nos mercados de publicidade online e e-commerce. Outra preocupação é em relação à utilização da inteligência artificial, considerada uma tecnologia dual-use, isto é, de uso civil e militar.  De fato, com a inteligência artificial é possível coletar sinais de inteligência. Também, é possível otimizar o poder de precisão das armas inteligentes em direção aos alvos. Com a inteligência artificial, há melhoria nos sistemas de reconhecimento, vigilância, inteligência e comando e controle. Por exemplo, com a visão computacional utilizada em drones, aviões, satélites, mini-submarinos, há uma precisão extraordinária na capacidade de reconhecimento de objetos, pessoas, cargas, ambientes, etc.  A nova lei de segurança nacional dos Estados Unidos (National Defense Authorization Act for fiscal year 2021) contém regras sobre tecnologia de inteligência artificial, criptografia, redes 5G e internet das coisas. As autoridades norte-americanas preocupam-se quanto à exportação da tecnologia de inteligência artificial para outros países, especialmente para os países adversários dos Estados Unidos como é o caso da China.

O orçamento do Pentágono para investimento em tecnologia de inteligência artificial é inferior ao da Big Techs. Considera-se o risco da diminuição do tamanho das Big Techs possa afetar o acesso pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos à tecnologia de inteligência artificial. Há, portanto, a aproximação das Big Techs em relação à questão de antitrust e segurança nacional.[2] Como pontos semelhantes das empresas de tecnologia, a utilização de software, hardware e a tecnologia de microships (semicondutores), a qual os Estados Unidos é o líder global. Google, Microsoft, Apple, Twitter mantém relatórios sobre requisições de dados realizados pelo Departamento de Justiça e Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Além disto, destaque-se que houve a aprovação do Cloud Act, uma legislação para possibilitar o acesso pelo governo norte-americano a dados armazenados em servidores localizados no exterior. Além disto, há o Foreign Surveillance Act, a legislação que autoriza a vigilância do exterior de pessoas.  Os Estados Unidos é o país proprietário da tecnologia GPS (global positioning system). 

A partir desta tecnologia é possível a obtenção de sinais de inteligência, isto é, dados relevantes aos serviços de inteligência nacional dos Estados Unidos. Neste contexto, há ainda a National Security Agency, a agência federal responsável pela segurança nacional dos Estados Unidos, a qual obtém sinais de inteligência de todas as partes do globo, incluindo-se informações terrestres, marítimas, aéreas e espaciais. Tem capacidade de interceptar comunicações em qualquer lugar do mundo seja diretamente por mediante a solicitação de apoio a um dos integrantes da rede denominada Five Eyes: Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.  Além disto, há sempre presente o risco de serem realizadas ações encobertas e operações de influência em redes sociais.

A título ilustrativo, veja-se o caso das campanhas de desinformação realizadas pela Rússia em relação às eleições presidenciais dos Estados Unidos. Robôs foram utilizados em redes sociais para disseminar fake news. Também, há o risco de campanhas de desinformação com danos colaterais à saúde pública, como é o caso em relação ao tratamento à pandemia do coronavírus. Ademais, há o risco de operações de influência estrangeira nos processos eleitorais, com apoio ou contra a determinados candidatos, bem como ações para derrubar ou apoio governos. Ou seja, um golpe de estado pode ser gestado no ambiente das redes sociais. E, há, ainda, o risco de guerras cibernéticas, com operações cibernéticas de ataques às infraestruturas nacionais de um país, como é o caso dos bancos, sistemas de energia elétrica, telecomunicações, entre outros. Por outro lado, há dois aspectos a serem analisados em relação às Big Techs. Primeiro, a questão do 5G. Com esta nova tecnologia há a redução do tempo de latência do canal de retorno da comunicação (comunicações mais rápidas) e o aumento da capacidade de transporte de pacotes de dados, possibilitando melhor experiências para os usuários em tempo real. Assim, novas aplicações poderão ser ofertadas aos consumidores como a realidade virtual e realidade aumentada, algo interessante para o comércio eletrônico. Também, realidade virtual e realidade aumentada servirá às aplicações no setor de entretenimento, como jogos e mídia. Segundo, a questão do 6G. Esta tecnologia será complementar ao 5G. Deste modo, permitirá o escoamento de tráfegos na rede 5G pela rede wireless indoor de residências, unidades comerciais e industriais. Por isso, há interesse das Big Techs (como o Facebook) em liberar a faixa de frequências do 6G para uso não licenciado.

Há o potencial do desenvolvimento da realidade virtual e realidade aumentada, inclusive com sistemas de telepresença por holografia.  Por outro lado, há questão concorrencial em relação às Big Techs. Em julho de 2020, o Senado dos Estados Unidos, por sua Comissão de Justiça, realizou uma audiência pública para ouvir os representantes das empresas Amazon, Apple, Google e Facebook.  O objetivo da audiência foi a investigação sobre práticas monopolistas de mercado, com abusos de poder econômico pelas referidas empresas.  Juntas as empresas possuem faturamento superior a 5 (cinco) trilhões de dólares, um valor muito superior ao PIB do Brasil. A Amazon foi indagada respeito de suas práticas comerciais em relação aos revendedores. As autoridades norte—americanas querem saber se a Amazon coleta dados confidenciais de revendedores em sua loja virtual, para o fim de promover seus próprios produtos, ao invés dos produtos das empresas concorrentes. Citou-se como exemplo a venda do smart speaker Alexa, com descontos no preço, como uma tática para acessar o mercado de smart home. Também, Apple foi questionada a respeito de suas práticas comerciais em relação aos desenvolvedores de aplicativos. Há acusações de que Apple beneficiaria seus próprios produtos, em detrimento de produtos de concorrentes em sua loja virtual.  A China é para a Apple um grande mercado consumidor, também boa parte dos fornecedores da Apple estão em território chinês. O Facebook foi perguntado sobre as suas práticas de coleta de dados de empresas concorrentes, bem como sobre a aquisição de empresas concorrentes como o Instagram e o WhatsApp.

Os Senadores querem saber se o Facebook utiliza de seu poder econômico para restringir a concorrência, eliminando-se os concorrentes e impedindo a inovação e o surgimento de novas startups. Foi questionada a empresa Facebook se a empresa utiliza algoritmos para censurar conteúdos difundidos pelos conservadores. A empresa responde que adota políticas de moderação de conteúdos que possam causar danos às pessoas. Assim, uma pessoa que divulgou o remédio cloroquina teve seu post retirado do Facebook. A empresa alega que como não há comprovação científica da utilização do remédio para a cura do coronavírus, então para proteger a saúde das pessoas foi retirado o conteúdo.

Há política de comunidade com parâmetros para a moderação de conteúdos de discursos do ódio, discursos racistas e violentos.[3] O Google  foi questionado a respeito de suas práticas comerciais de coleta de dados dos usuários, para o desenvolvimento de produtos e serviços. Há a acusação de que o Google abusa de sua posição no mercado de publicidade digital, com práticas predatórias contra concorrentes, havendo a concentração econômica no mercado. Um dos Senadores indagou a recusa do Google em prestar serviços para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A empresa afirmou que não se recusou a prestar serviços para o governo norte-americano.  E, ainda, Amazon, Google, Facebook e Apple foram questionadas se colaboram com o governo da China e/ou Partido Comunista Chinês. Todas as empresas responderam que não colaboram com o governo chinês, nem com o Partido Comunista chinês. O Google tem centros de pesquisa em inteligência artificial em território chinês. Em síntese, há investigações nos Estados Unidos sobre a configuração de monopólio  nos mercados de comércio digital, publicidade digital e redes sociais, bem como a necessidade e/ou não de regulamentação dos setores.  Para além disto, há questões fundamentais objeto de debate sobre as Big Tech: a soberania sobre os dados, livre fluxo das informações e as respectivas exceções para fins de segurança nacional[4], segurança pública, saúde pública e economia nacional, o acesso aos dados pelos serviços de inteligência nacional e a coleta de dados de inteligência, transferência internacional de dados,  comércio digital (regras sobre marketplace), publicidade digital (abuso de posição dominante no mercado), infraestrutura de dados (Cloud), geolocalização (geodados), confidencialidade e segurança dos dados, a jurisdição nacional e a extraterritorialidade, competição global, etc.

Em síntese, as Big Techs representam o verdadeiro soft power dos Estados Unidos com a capacidade de moldar a economia digital de outros países. Expressam, também, o poder geocultural norte-americano, o qual tem a capacidade de influenciar as culturas de outros países: os hábitos das pessoas, pensamentos, sentimentos e ações. No século 20, a mídia jornalística e televisiva é que tinha este poder de influenciar a opinião pública. Agora, no século 21, as Big Techs, principalmente as redes sociais, é que detêm este poder de moldar a opinião pública. Em países de democracia matura, a questão da identidade nacional é o centro das atenções da segurança nacional. Isto porque se um país for moldado por outro país, simplesmente não há compromisso com a própria nação. O desafio é desenvolver uma política multicultural, com o respeito às culturas locais, para evitar o risco de desaparecimento das culturas genuinamente brasileiras.  Compete ao Brasil, na expressão de sua soberania, equalizar distintos interesses em relacionados às plataformas digitais.

A União Europeia possui geoestratégia clara quanto ao posicionamento em relação à sua soberania sobre seus dados. O Brasil deu um primeiro passo importante com a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados. Mas, a medida por si só é insuficiente. É necessário promover ações para incentivar a implantação de infraestruturas de computação em nuvem com capacidade para competir com os titãs globais. Praticamente, o Google não tem concorrentes no Brasil. O Facebook não tem concorrentes no Brasil.  Dados pessoais e dados não pessoais referem-se, também, a questões de inteligência e defesa nacional.

Por isso é necessária uma nova compreensão do tema, sob pena de o Brasil ficar à mercê das potências estrangeiras. No contexto da economia digital, a situação somente se agravará. Em questão, a soberania do Brasil, soberania de dados, soberania sobre infraestruturas de rede digitais e a questão da concorrência no mercado. Há, evidentemente, enormes riscos geopolíticos para o Brasil ainda não são devidamente mensurados pelo Estado brasileiro, nem pela sociedade.  


[1] Huntington, Samuel P. The clash of civilizations and the remaking of world order. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 2011.

[2] Foster, Dako e Zachary, Arnonld. Antitrust and artificial intelligence. how breaking up big tech could affect the Pentagon’s acess do AI, CSET. Center for Security and Emerging Technology, may 2020.

[3] A OCDE divulgou relatório sobre conteúdos extremistas em plataformas digitais e as políticas adotadas pelas empresas.

[4] Ver: Foster, Dakota e Zachary, Arnold. Antitrust and artificial intelligence: how breaking up big tech could affect the Pentagon’s acess to AI. Center for security and emerging technology. May, 2020

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Ericson M. Scorsim

Advogado e Consultor em Direito da Comunicação. Doutor em Direito pela USP. Autor da Coleção Ebooks sobre Direito da Comunicação com foco em temas sobre tecnologias, internet, telecomunicações e mídias.