Categorias
Artigos

Igrejas na televisão: acesso e limites. Da fé no mercado ao mercado da fé?

Ericson Meister Scorsim

A mídia tem apresentado diversas notícias a respeito das relações entre a Igreja Universal e a Rede Record. Destaque foi dado à denúncia criminal apresentado pelo Ministério Público de São Paulo contra o bispo Edir Macedo e outras pessoas.

O presente texto tem o propósito de apresentar o quadro regulatório referente ao acesso à atividade de televisão por grupos religiosos e seus respectivos limites. Tal tema implica em inúmeras reflexões de extrema relevância para a sociedade.

A televisão tornou-se um instrumento valioso para a difusão da fé pelas igrejas. Será que as instituições religiosas podem acessar canais de televisão? Entendo que a resposta é positiva, pois há a garantia constitucional neste sentido. A Constituição de 1988 determina que é vedado ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19). Este preceito não tem o efeito de vedar a exploração pelos grupos religiosos da atividade de televisão por radiodifusão. A Constituição adota a forma de Estado laico, para garantir a democracia, isto é, para possibilitar o governo de todos e para todos. Proíbe-se o governo de atuar em favor de determinada agremiação de natureza religiosa. Contudo, repita-se, isto não significa a negação do acesso das igrejas na atividade de televisão.

A norma deve ser interpretada no sentido da imposição da neutralidade do Estado em face das correntes religiosas. Ou seja, deve ser mantido o saudável distanciamento para a democracia entre o poder político e poder religioso.

O Estado laico, ao contrário de um Estado teocrático, não pode adotar nenhuma religião, mas tem a prerrogativa de, em regime de colaboração, desenvolver com as igrejas atividades de interesse público. O Estado laico afirmou-se em resposta aos abusos cometidos pela intromissão das forças religiosas na política dos países. Trata-se de uma forma de proteção contra a intolerância e a violência decorrente das diferentes manifestações em nome de Deus.

A Carta Fundamental tanto respeita a liberdade religiosa quanto a liberdade de comunicação social. É garantido o “livre exercício dos cultos”, bem como “na forma da lei, a proteção dos seus locais de culto e as suas liturgias” (art. 5º, VI). Portanto, está amparada a transmissão ao vivo do culto, da pregação ou da missa quanto qualquer outra manifestação religiosa, ainda que gravada. Atualmente, não é concebível pensar no exercício da liberdade de culto sem a disponibilidade de sua veiculação pela televisão.

Por outro lado, pode-se argumentar que o regime de serviço público impede o acesso dos entes religiosos à atividade de televisão. Ora, a técnica de qualificação da radiodifusão como uma modalidade de serviço público serve como ferramenta para a ampliação e redistribuição das oportunidades comunicativas e de fortalecimento do pluralismo de expressão.

No livro de minha autoria TV Digital e Comunicação Social (Fórum, 2008), resultado de tese de doutorado na USP, proponho a releitura da concepção de serviço público de radiodifusão. Em verdade, apresento uma visão crítica da generalização do conceito de serviço público para todas as espécies de radiodifusão. Na visão clássica, o serviço público de televisão por radiodifusão, cujas origens são anteriores à Constituição de 1988, é compreendido como uma atividade de titularidade exclusiva da União. Trata-se de uma interpretação estatista da radiodifusão. Sustento, em uma perspectiva contemporânea à luz do contexto constitucional, a revisão desta visão singular e de reserva estatal exclusiva. É essencial pensar e efetivar o modelo plural de televisão promulgado pela Constituição. Por isso, entendo que a radiodifusão deve ser compartilhada entre sociedade, mercado e estado.

Impõe-se um novo paradigma que atenda ao regime das liberdades públicas e de participação plena na radiodifusão dos diversos grupos sociais. O objetivo principal é efetivar o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal (art. 223) no regime dos direitos fundamentais. Assim, faz-se necessária a estruturação do setor público não estatal de radiodifusão, integrado pelas televisões públicas que sejam independentes do poder estatal e do poder econômico. Neste contexto, as igrejas devem estar enquadradas no setor público não estatal da radiodifusão. Não podem lucrar com a atividade de radiodifusão. Elas, a princípio, podem manter televisões educativas, mas jamais televisões comerciais.

No âmbito infraconstitucional, existem algumas regras que necessitam ser revistas e adaptadas à normatividade constitucional. Os serviços de radiodifusão são disciplinados pela Lei n. 4.117, do ano de 1962, que está desatualizada e em descompasso com a Constituição, não atendendo às exigências de pluralidade institucional na organização do setor de radiodifusão. Por sua vez, o Decreto-lei n. 236/1967, ao modificar a referida lei, estabelece quais as pessoas que podem explorar o serviço de radiodifusão: União, Estados, Municípios, Universidades, Fundações e sociedades nacionais (art. 4º).

Será que a lei impede que as igrejas sejam proprietárias e (ou) concessionárias de emissoras de televisão? Para mim, a resposta é negativa. O diploma legal há de sofrer uma interpretação conforme a Constituição, sob pena de ser declarado inconstitucional. A lei não estabelece um rol exaustivo das entidades capazes de executar os serviços de radiodifusão. Trata-se de uma enumeração meramente exemplificativa, que não exclui esta possibilidade para outras entidades quanto à prestação dos serviços em análise.

O legislador não pode impedir o exercício do direito constitucional de acesso à televisão. A liberdade de comunicação social aponta para a inconstitucionalidade da vedação absoluta do acesso aos serviços de radiodifusão. O que é admissível é a imposição de condições para o exercício da liberdade religiosa mediante a atividade televisiva. A outorga da concessão às igrejas não é, por si só, um problema institucional. Aliás, há o dever do poder público garantir o ingresso na atividade de televisão para as organizações religiosas. Em outros países, por exemplo, nos EUA, Portugal, Espanha entre outros, é assegurado o acesso das confissões religiosas à televisão. A igreja é uma instituição dedicada ao exercício do culto e à propagação da fé. Trata-se de uma associação privada sem fins lucrativos. De certo modo, elas prestam um serviço de utilidade pública.

É importante, no entanto, definir-se no âmbito legislativo quais os critérios que identifiquem quais as associações religiosas que merecem receber isenções, imunidade e benefícios (fiscais, trabalhistas e patrimoniais). É fundamental a adoção de parâmetros que possibilitem o reconhecimento dos direitos das igrejas legítimas, ou seja, aquelas respeitáveis e tradicionais, diferenciando de associações criadas oportunamente para fraudar a lei. Deve-se punir as entidades que servem como mero instrumento para o cometimento de ilícitos e burla à legislação. Os fiéis fazem doações na expectativa de que o dinheiro seja aplicado no custeio da instituição e em obras de assistência social, por razões de solidariedade, caridade etc. Alguns, a bem da verdade, esperam algo em troca de sua fé.

A questão problemática é o registro das emissoras de televisão, ligadas às igrejas, em nome de pessoas físicas, sejam dirigentes, parentes e fiéis. Se a associação religiosa é a titular da emissora de televisão, então o registro oficial deve ser feito em seu nome. Quanto a este aspecto, destaque-se que a Constituição originariamente não admitia a propriedade de emissoras por pessoas jurídicas, permitia somente que pessoas físicas fossem as titulares. Porém, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 36, de 28 de maio de 2008, que conferiu nova redação ao art. 222 da Constituição, abriu-se a possibilidade de as pessoas jurídicas serem proprietárias de empresas de radiodifusão. A meu ver, a lei não proíbe que as igrejas acessem a atividade de televisão. É proibido, isto sim, que as organizações religiosas sejam proprietárias de emissoras de televisão. Reprise-se que não é admissível que elas possuam emissoras comerciais, isto é, com finalidades lucrativas. A igreja não é um negócio, nem um instrumento para o enriquecimento privado. Também, não pode servir como plataforma eleitoral para candidatos a cargos públicos. Se uma determinada organização com fins religiosos mantiver uma televisão comercial haverá desvio de finalidade.

Outro sério problema consiste no desvio dos recursos dos fiéis para o enriquecimento privado dos gestores e controladores da igreja. Se configurada a coação psicológica para forçar a arrecadação de recursos há séria ilegalidade. Uma situação legítima é a expressão e difusão da fé, outra totalmente diferente é a exploração da fé do público. Os administradores que eventualmente pratiquem abusos na gestão da instituição devem ser punidos. Ora, se a TV pertence à igreja, então, obviamente, a programação deve ser compatível com a natureza religiosa. Ou seja, deve estar voltada ao ensino da religião, da cultura, à informação e ao culto. O valor central a ser defendido é o princípio da dignidade humana. Ademais, as televisões religiosas não escapam da vinculação aos princípios constitucionais catalogados no art. 221 da Constituição.

Por outro lado, dentre as modalidades de acesso à atividade de televisão pelos grupos religiosos, há a compra de espaço na programação das emissoras comerciais. Será lícita a aquisição de tempo de televisão para a exibição de mensagens religiosas? A emissora comercial tem a liberdade de programação, escolhendo os formatos dos programas, horários de transmissão e publicidade. Se ela decidir por ceder onerosamente espaço para a veiculação de programas religiosos, a princípio, não há, em tese, nenhum ilícito. Ilegalidade haveria se houvesse cessão total do tempo pela emissora comercial para a igreja. Isto desde que a cessão de tempo da programação seja parcial.

Outra questão intrigante consiste na recusa do acesso das igrejas à programação por uma emissora. A princípio, uma empresa de radiodifusão tem a prerrogativa de rejeitar a transmissão de um programa religioso se o mesmo for contrário à sua linha editorial. Existe uma outra questão a ser enfrentada. É que a televisão aberta utiliza-se da radiodifusão. Esta requer o uso das freqüências do espaço eletromagnético. As frequências constituem um bem público e escasso. Por que ao invés de se conceder um canal de televisão para cada igreja não se impõe um canal único a ser compartilhado entre todas? Com a tecnologia digital é possível combinar as diversas programações das diferentes organizações religiosas em um único espaço. Todas as religiões têm, a princípio, o direito constitucional de acesso à televisão. Assim, deve ser garantido o acesso aos católicos, protestantes, evangélicos, judeus, budistas, islâmicos, espíritas, etc. Outros grupos sociais têm igual direito, tais como: partidos políticos, sindicatos, empresas de comunicação, associação de cidadãos etc. O Estado deve garantir a igualdade de oportunidades de acesso à televisão para todos os grupos sociais, sejam religiosos, sejam não religiosos. Vale dizer, o Estado não pode promover o silêncio de determinados grupos que não dispõem de recursos suficientes para acessar os sistemas de radiodifusão. Sua função é a de garantir e de redistribuir as oportunidades comunicativas.

Aqui fica registrada a omissão do Congresso Nacional e do Conselho de Comunicação Social em cumprir com a sua função de regular os serviços de televisão. A radiodifusão vive um caos normativo. Há uma infinidade de leis, decretos, resoluções e portarias contrários à Constituição e que dificultam a vida de todos no que tange à sua respectiva operacionalização prática. Se de um lado, há o dever do poder público impor limites para o acesso à televisão pelas igrejas, por outro lado, ele tem que respeitar a liberdade de radiodifusão.

O Brasil vive uma mistura perigosa entre Estado e religião. Há uma confusão entre poder político, poder midiático e grupos religiosos, o que não é saudável para democracia. A concentração de poderes é repelida pelo Estado de Direito. A defesa da livre formação da opinião pública e da vontade política é uma das condições para o adequado funcionamento das instituições democráticas. O legislador, ao revisar a legislação, deve buscar o ponto de equilíbrio entre a proteção do acesso de todas as religiões à televisão com a imposição de limites. Repito que o problema não é o exercício da liberdade religiosa pela televisão, mas sim os abusos cometidos em seu nome e o desrespeito aos princípios constitucionais da produção e programação (art. 221). A associação religiosa tem o direito à difusão de suas mensagens religiosas. Todavia, a situação torna-se complicada quando estas entidades têm a pretensão de influenciar o funcionamento do sistema político.

A Conferência Nacional de Comunicação, a ser realizada no final deste ano, promete ser o canal eficaz para a formatação do novo modelo plural de televisão, comprometido com a realização prática dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição. Espera-se a edição de uma nova lei que, além de abordar da organização do setor de radiodifusão em face das novas tecnologias, discipline os critérios para o exercício da liberdade de acesso à televisão pelas igrejas. O legislador deve encontrar a justa medida de proporção na utilização do tempo de televisão pelas referidas entidades, segundo critérios de razoabilidade e representatividade. A finalidade principal a ser alcançada consiste no equilíbrio e na harmonização dos opostos: a preservação do Estado laico e o respeito ao exercício da liberdade religiosa pela televisão, nos termos de uma nova legislação, uma vez que nas palavras de Georges Ripert: “quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito”.

Jus Navigandi – www.jusnavigandi.com.br, 05 set. 2009.

 

 

 

Categorias
Artigos

Os direitos fundamentais e os serviços de televisão por radiodifusão

Ericson Meister Scorsim

1. Introdução. 2. Liberdade de pensamento e de expressão. 3. Direito de informação. 4. Direito à comunicação social. 5. Liberdade de iniciativa. 6. Direito à educação. 7. Direito à cultura. 8. Direito ao entretenimento. 9. Conclusões

1. Introduction. 2. Freedom of Speech. 3. Information Right. 4. Social Communication Right. 5. Market Freedom. 6. Education Right. 7. Culture Right. 8. Entertainment Right. 9. Conclusions.

The article analyzes the relationship between fondamentals rights and broadcasting. The nucleus of this work consists of demonstrating the application the regulatory model of television by broadcasting  in the Law nº 4.117/62, an out of date reference decree in terms of technology and non-conformance with Federal Constitution of 1988. 

1. Introdução

Os serviços de  televisão por radiodifusão atingem, praticamente, toda a população, sendo a principal fonte de informações e de entretenimento dos brasileiros.

A Lei nº 4.117/62, que trata dos serviços de televisão por radiodifusão, ainda em vigor (apesar de substancialmente modificada na parte relativa às telecomunicações pela Lei nº 9.472/97), mantém o regime de delegação estatal à iniciativa privada, mediante concessão, permissão e autorização.

Segundo a lei, o serviço de radiodifusão é aquele “destinado a ser recebido direta e livremente pelo público em geral, compreendendo radiodifusão sonora e televisão” (art. 6º, letra “d”, da Lei nº 4.117/62). Diferentemente de outros serviços de televisão, a radiodifusão é gratuita e vale-se das freqüências do espectro eletromagnético para a propagação dos sinais até as residências do público destinatário das emissões.

A operação dos referidos serviços impacta diretamente os direitos fundamentais, entre os quais estão: a liberdade de pensamento e de expressão, direito à informação, direito à educação, direito à cultura, livre iniciativa e direito ao entretenimento.

A importância do tema acentua-se ainda mais em função da evolução tecnológica com a introdução da tevê digital que possibilita um número infinitivo de novas aplicações em benefício dos usuários do serviço público de televisão por radiodifusão.  Houve a evolução da tecnologia, contudo o direito está totalmente desatualizado.

Daí porque o presente texto se propõe a realizar o estudo a respeito da conexão normativa entre os direitos fundamentais e os serviços de televisão por radiodifusão.

2.  Liberdade de pensamento e de expressão

A pessoa pode adotar uma representação de si e do mundo em que vive. O objeto do pensamento a recai sobre a experiência de vida ou sobre assuntos fora da dimensão de tempo e espaço. Nas inúmeras relações sociais que mantém, expressa  seu pensamento. No entanto, nem tudo aquilo que é pensado é exterioriza.[1]

O exercício da liberdade de pensamento não implica necessariamente em sua expressão. Ou seja, há a dimensão não exteriorizada do pensamento, como também existe o campo da expressão das idéias, opiniões e sentimentos.[2]

A Constituição reconhece como direito fundamental  a liberdade de  manifestação de pensamento (art. 5º, IV). A Carta Magna proclama, ainda, que: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, IX). Tais dispositivos estão incorporados no capítulo destinado aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. No capítulo da Comunicação Social, a CF garante que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na própria Constituição (art. 220).

A liberdade de expressão é uma posição fundamental que se dirige  contra o Estado, mas que dele também requer proteção contra as ações dos particulares. Trata-se de um direito do indivíduo, servindo à sua realização pessoal e à sua integração na comunidade. Assim, qualquer concepção funcional dessa liberdade representa censura ao pensamento que desvie da concepção majoritária.[3]

A liberdade de expressão decorre da liberdade de pensamento. Não há liberdade de expressão sem o exercício da liberdade de pensar. Igualmente, a liberdade de expressão do pensamento engloba determinadas formas de ação.  Por exemplo, manifestações silenciosas mediante faixas, camisetas, adesivos etc. Também, abrange a liberdade negativa de pensamento, inclusive o direito ao silêncio, o direito à não manifestação exterior de opiniões, idéias ou pensamentos.

Jorge Miranda, ao analisar os direitos fundamentais de comunicação social, explica que: “a liberdade de expressão abrange qualquer exteriorização da vida própria das pessoas: crenças, convicções, idéias, ideologias, opiniões, sentimentos, emoções, actos de vontade. E pode revestir quaisquer formas: a palavra oral ou escrita, a imagem, o gesto, o silêncio”.[4]

O pensamento objeto de expressão não requer certos atributos como o da veracidade e da inteligibilidade. O sujeito pode expressar pensamentos falsos ou não inteligíveis.[5]

A Constituição consagra a liberdade de expressão artística como  direito fundamental (art. 5º, IX). A expressão artística engloba diversas atividades: música, dança, artes plásticas, teatro, literatura, etc.

Mas, qual a razão da autonomia da liberdade artística diante da liberdade de expressão do pensamento?

Segundo José Afonso da Silva a liberdade de expressão artística foi concebida de modo a evitar os condicionamentos colocados sobre a liberdade de manifestação do pensamento no regime constitucional anterior, que estavam fundados na proteção à moral e aos bons costumes. Assim, a afirmação da liberdade artística como conteúdo da liberdade de manifestação do pensamento acaba contaminando reciprocamente esses dois fenômenos jurídicos, tendendo a desnaturar o fenômeno artístico em razão da excessiva restrição em seu âmbito normativo. Por outro lado, conforme salienta o mesmo autor, a liberdade de expressão artística é uma das modalidades de expressão da cultura, conforme dispõe a Constituição Federal (arts. 215 e 216).

As normas constitucionais que consagram a liberdade de expressão são as mais abertas possíveis, pois envolvem o centro da criatividade humana.[6].

Ademais, tal conteúdo não é dado expressamente pelo texto constitucional, ao contrário, o seu âmbito de proteção é desenvolvido pela teoria e pela jurisprudência.

Os limites à liberdade de expressão encontram-se na própria Constituição, advindo, em regra, de outros direitos fundamentais (direito à honra, à intimidade, à vida privada, à imagem, estados de exceção, bem como restrições provenientes da organização dos meios de comunicação social e dos direitos da criança e do adolescente).[7]

Na hipótese de não haver uma limitação explícita à liberdade de expressão, o intérprete há de se socorrer de uma interpretação constitucional sistemática. A restrição legislativa à liberdade de expressão não pode ser feita por exigências da moral, ordem pública e bem-estar social. A delimitação pode ser feita, desde que respeitado o seu núcleo essencial tal como definido pela Constituição.[8]

Segundo Maurício Ribeiro Lopes, as limitações à liberdade de expressão podem ser de duas espécies: limites decorrentes da própria natureza técnica do meio enquanto comunicação social, como o rádio e a televisão, efetuadas por ondas limitadas, resultando no regime de concessões ou permissões e limites impostos pela necessidade de convivência com outros direitos fundamentais.[9]

A liberdade de expressão do pensamento pode ser exercida das mais variadas formas e meios, como, aliás, reconhece a nossa Constituição.[10]

Por sua vez, a regulação do exercício da liberdade de expressão há de considerar a natureza do meio de difusão do pensamento. Existem alguns meios de transmissão imediatamente disponíveis ao alcance da pessoa e aqueles que não o estão. Por diversas razões (econômicas, jurídicas, técnicas, culturais e políticas entre outras), o acesso a determinados meios para a expressão do pensamento é restringido. Assim, a título hipotético, a eventual cessação da atividade de televisão em nosso País, de modo algum, tolheria o exercício da liberdade de expressão, pois  as pessoas poderiam, mediante outros meios de transmissão, vir a expressar seus pensamentos.[11]

Resta saber se da liberdade de expressão é possível extrair o direito à criação de emissoras de televisão. No Direito brasileiro, alguns doutrinadores têm sustentado a existência de verdadeiro direito à criação de estações de televisões de âmbito local. Vera Lopes reconhece a possibilidade de existirem “TVs livres”, isto é, o direito à criação e ao funcionamento de emissoras de televisão de baixa potência, sem qualquer finalidade lucrativa, destinadas à divulgação de programas culturais e educativos para a comunidade, independentemente de qualquer autorização administrativa.[12].

Fernando Silveira advoga o direito à criação de emissoras de baixa potência com fundamento na liberdade de expressão e no direito à informação, bem como à luz de uma nova leitura do sistema federativo brasileiro.[13]

Em que pese, a opinião dos respeitáveis doutrinadores entendemos que o direito à criação de emissoras de televisão carece de intervenção legislativa, não sendo possível extraí-lo diretamente do seio constitucional. Somente, o poder legislativo é que detém a competência para disciplinar a constituição de tevês.

Para além dessa questão central referente à  entrada no setor de radiodifusão, mediante a constituição de  estações de tevês, há outra fundamental consistente no acesso de indivíduos e grupos à programação da TV.

A falta  de acesso aos meios de comunicação mediante a recusa por parte das emissoras causas prejuízos danoso à personalidade e à sociedade. Conforme expõe  Nuno e Souza:

“A recusa do direito de acesso aos meios de comunicação, como há pouco referíamos, é susceptível de prejudicar a personalidade individual, a formação da opinião pública, principalmente se se concluir  que a liberdade de imprensa  apenas se possibilita a um pequeno grupo de pessoas, sendo vedada, pelo menos em termos práticos, aos restantes consortes do direito; o cidadão sem meios econômicos para fundar uma empresa de imprensa acaba por sair prejudicado. Porém, com base nos direitos da liberdade de expressão e imprensa não se resolvem os problemas da falta de igualdade, tudo dependendo da política do Estado-de-Direito democrático e social; o exercício de muitos direitos fundamentais custa dinheiro e a Constituição não garante uma total igualdade de bens, pelo que subsistirá uma certa desigualdade, que se quer mínima, no valor prático dos direitos. Outra solução parece difícil: se os grandes meios de comunicação fossem preenchidos, em boa parte, com a livre expressão de opiniões privadas, diminuiria radicalmente a sua capacidade funcional; além disso, o direito de divulgação da opinião individual surge autonomizado da liberdade dos meios de comunicação”.[14]

A Constituição do Brasil, embora não reconheça um direito genérico da coletividade, garante apenas aos partidos políticos o direito de acesso gratuito à televisão, na forma da lei (art. 17, §3º).Com isso, o constituinte perdeu uma boa oportunidade histórica para propiciar a realização de democracia substancial no Brasil, mediante a extensão em larga escala do direito à expressão e comunicação aos mais diversos grupos sociais.[15]

A  regulação dos requisitos para o acesso à televisão deve ser feita de modo a preservar o patrimônio cultural da sociedade, composto pela pluralidade de valores e crenças, direito à diferença, defesa das minorias, tolerância, discussão e crítica, dentre outros. A liberdade de acesso aos meios de comunicação não impõe para o Estado a obrigação de regular adequadamente a atividade de televisão  (acesso e organização), entretanto, não impõe aos particulares obrigações de pluralismo, neutralidade.

Segundo José Alexandrino, tais obrigações não resultam da liberdade de expressão, decorrem do ordenamento jurídico genericamente considerado, ou da proteção a outros bens protegidos constitucionalmente.[16]

Por outro lado, outra manifestação particular da liberdade de expressão é o direito de resposta como modalidade de acesso à televisão. O Direito brasileiro o reconhece, mediante o seguinte texto constitucional: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou às imagens” (art. 5º, V, CF).[17] Nesse caso, a  norma constitucional está a proteger a honra ou reputação da pessoa diante de uma divulgação que agrava sua condição pessoal.

Sobre esse assunto,  o jurista lusitano Vital Moreira aduz: “O direito de resposta é portanto um específico direito de expressão, ou seja, uma pretensão juridicamente protegida de fazer publicar ou difundir uma contra-mensagem no mesmo órgão de comunicação onde apareceram a público as declarações que tenham posto em causa o interessado”.[18]

Segundo Fábio Konder Comparato, tal mecanismo de defesa há de proteger bens coletivos ou sociais, conhecidos também como interesses difusos. Não é possível que uma interpretação da norma constitucional que trata do direito de resposta conclua apenas pela proteção aos interesses individuais. Para ele, é preciso que a partir da interpretação dos interesses difusos, o direito de resposta seja exercido diante dos controladores dos meios de comunicação social.[19]

O exercício da liberdade de pensamento pela televisão é objeto de críticas, pois com o advento dos meios eletrônicos de comunicação produziu significativa alteração na forma de percepção do mundo pelas pessoas.  É que a linguagem televisiva é pautada pela imagem. Em razão dessa natureza instaura-se uma nova forma de percepção da realidade.[20]

Marshall Mcluhan explica que a imagem televisiva ocasiona a sinestesia nas pessoas, isto é, a unificação dos sentidos. Trata-se de um meio menos visual do que tátil-auditivo, ao contrário dos meios marcados pela tipografia.[21]  A própria velocidade da linguagem utilizada pela televisão não é muito propicia à expressão do pensamento. Todo e qualquer pensamento exige tempo. A reflexão é um ato que se prolonga no tempo. No entanto, a fórmula de linguagem adotada pela televisão, sobretudo ancorada em imagens, torna impraticável o ato de pensar.[22]

A liberdade de pensamento, a liberdade de consciência e de expressão, segundo José Alexandrino,  juntamente com os mais básicos direitos sociais constituem o núcleo que conduz a todos os demais direitos fundamentais. São liberdades que promovem a concretização mais próxima do princípio da dignidade da pessoa humana.[23]

A seguir a reflexão sobre o direito de informação.

3. Direito de informação

O direito de informação foi incorporado na Constituição de 1988, que o reconheceu como um direito fundamental de caráter individual e coletivo: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício fundamental” (art. 5º, XIV).

Em outra parte, a Constituição prevê: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” (art. 220). A Carta preceitua ainda o seguinte: “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social …” (art. 220, §1º).

A a análise do direito à informação requer o detalhamento dos direitos que o compõem.

Primeiro, o direito de informar, cujo sentido é o de possibilitar a todos a comunicação de informações, sem obstáculos ou discriminações.  Ou seja, garantir a livre recepção da informação pelo público.

Segundo, o direito de se informar, cujo significado é o da possibilidade de todos procurar informações, sem obstáculos ou discriminações. Aqui, a primazia é na liberdade de escolha dos indivíduos e organizações quanto à busca  da verdade.

Terceiro, o direito de ser informado que representa a liberdade quanto ao recebimento de informação, bem como o direito de manter-se informado, sem obstáculos ou discriminações.[24]

A identidade do direito à informação passa, necessariamente, pela compreensão da diferença com a liberdade de expressão. O fator distintivo consiste  no conceito de informação. Esta pressupõe a comunicação de uma dada mensagem, referente a fatos, dados ou conhecimentos, entre  emissor e receptor. Ou seja, a informação exige a comunicação de mensagens vindas do mundo exterior que são por si mesmas comunicáveis.[25]

É preciso distinguir a liberdade de expressão da liberdade de informação.

O conteúdo da liberdade de expressão é constituído pela transmissão tanto de idéias quanto de opiniões.

Por sua vez, o conteúdo da liberdade de informação é formado pelos fatos.[26]

O problema está em que, muitas vezes, na comunicação pela televisão, veiculam-se misturadamente fatos e opiniões. A mera opinião é em muitos casos apresentada como fato, o que acarreta a construção de realidades meramente virtuais. Quanto à verdade, a conclusão é no sentido de que a mesma será mais facilmente alcançável mediante um pluralismo informativo. Quer dizer, mediante a institucionalização de diversas fontes será possível se aproximar melhor do ideal de objetividade da informação, separando o fato da versão apresentada por alguém  nela interessado.[27]

A diferenciação entre  as mensagens veiculadas  pelos meios de comunicação pode ser apurada por um critério finalístico.

Segundo Guilherme Pereira: “Seguindo esse critério finalístico, teríamos, num primeiro plano, a informação jornalística propriamente dita (atualizadora e pedagógica ou instrutiva), a informação publicitária ou propagandística e a recreativa ou de entretenimento”.[28]

Em um segundo plano, segundo o autor, já em relação à informação propriamente editorial, haveria a seguinte classificação: “expressão de idéias (concepções gerais, teorias, doutrinas, opiniões …), opinião crítica (sobre condutas, pessoas, fatos ou instituições) e narração de fatos.[29]

Mas, quais são os atributos da informação para que ela seja comunicável?

José Alberto de Melo Alexandrino elenca os seguintes atributos: a inteligibilidade da informação, a sua utilidade social, a veracidade e a observância de padrões formais.[30]

Conforme o autor, a informação pressupõe a sua respectiva inteligibilidade. Isto quer dizer que a informação deve ser percebida e compreendida. Tal operação exige um esforço intelectual que possibilite a adequada transformação da informação bruta em matéria cognoscível. Um dos problemas atuais da sociedade contemporânea  reside em que  a mera veiculação dos fatos é insuficiente para a compreensão por parte dos receptores. É necessário que as informações complexas, sobretudo as de cunho técnico, sejam traduzidas para o público leigo. O direito à informação passa a pressupor o direito à explicação.[31]

A informação pressupõe a sua utilidade social. A informação deve ser observada antes como uma realidade espiritual e imaterial que como um bem material. Essa é uma perspectiva normativa, pois não se ignora que a informação tornou-se mercadoria vendida por um preço no mercado. No entanto, o valor real da informação não se mede por um critério econômico. As informações mais valiosas na maior parte das vezes são aquelas obtidas de graça ou por poucos reais.[32] Nem toda a informação representa um interesse público que, aliás, não se confunde com o interesse do público. O interesse público representa uma noção normativa diferente do interesse concreto das pessoas. A questão da relevância da informação para a sociedade é definida por códigos éticos que norteiam o trabalho dos profissionais, sobretudo voltados para a respectiva produção e transmissão de notícias.

A informação pressupõe a veracidade. A  informação há de traduzir a realidade objetiva, razão pela qual se exige o máximo de diligência na coleta e organização dos dados obtidos.

Segundo o Tribunal Constitucional alemão, está excluída do âmbito normativo da liberdade de expressão a falsa informação.[33] Esta é a diferença substancial  entre o direito à informação e a liberdade de expressão, como dito acima.

Celso Ribeiro Bastos entende que: “Em nosso Texto Constitucional não se vislumbra a plenitude do direito de ser informado, vale dizer, de ser mantido adequada e verdadeiramente informado pelos meios de comunicação”.[34]

Ora, tal recusa à normatividade do direito à informação nos meios de comunicação social é, com o devido respeito, bastante conservadora, ao ignorar a plenitude dos efeitos das normas constitucionais. É certo que a Constituição não diz expressamente sobre o direito à informação verdadeira, afastando-se, com isso de alguns modelos constitucionais modernos, porém isto  não quer significar que o mesmo não exista.[35]

Domingos Dresch da Silveira explica:

“Não há como deixar de admitir que a informação inverídica, seja a que contraria diretamente a realidade objetiva, seja a que manipula, através de montagens, imagens ou fatos criando situação inexistente, contraria a legalidade, bem como a moralidade, pois a  mentira nunca será, em se tratando de comunicação social, moralmente aceitável”.[36]

De acordo ainda com o referido autor, outro fundamento que exige a veiculação de informações verdadeiras consiste no princípio constitucional que rege a programação da televisão, o qual determina o respeito aos valores éticos da pessoa e da família. Assim, por mais abstrato que seja o referido princípio, é certo que ele veicula a obrigação de a informação transmitida ser verídica, pois, caso contrário há ofensa aos valores éticos da pessoa e da família.[37]

O direito à informação verdadeira junto às emissoras de rádio e televisão fundamenta-se, ainda, no direito do consumidor de receber serviços públicos de modo adequado, conforme determina o art. 6º, X e 22 do Código de Defesa do Consumidor.[38]

A informação deve observar certos padrões formais. Como revela Eugênio Bucci, um editor ou um diretor de redação tem à sua disposição inúmeras alternativas para a divulgação de uma dada informação. Os jornalistas precisam a toda a hora decidir qual informação será divulgada, com qual ênfase, quando e com que fundamento. Daí a necessidade de um código deontológico de orientação para os profissionais que trabalham com a produção e veiculação de informações. Há o direito de o público saber qual o método de trabalho que orienta a produção e a divulgação da notícia.[39]

Por outro lado, antigamente o direito de estar informado pertencia apenas à órbita jurídica dos jornalistas, a fim de melhor exercer o seu mister de intermediário no processo informativo. Contudo, esta perspectiva individualista foi cedendo espaço a uma dimensão supra-individual. Deste modo, atualmente, o direito de informação, além de pertencer ao indivíduo, pertence igualmente ao público.[40]

A informação é um bem imaterial produzido por pessoas físicas. Não é uma criação de uma pessoa jurídica. Há, portanto, uma aparente incompatibilidade entre o direito de informação e atribuição de sua titularidade à pessoa coletiva. Ocorre que essa incompatibilidade é relativa, pois é preciso verificar a questão de um outro ângulo. O problema deve ser resolvido a partir da liberdade de imprensa, de iniciativa e a liberdade de comunicação social. Nesta perspectiva é possível assegurar à empresa o direito de informação.

A liberdade de informação dos jornalistas encontra-se limitada pela liberdade da empresa informativa.

Alguns sustentam, inclusive, a necessidade de separação entre o controle editorial e o controle empresarial, a fim de assegurar a efetivação da liberdade de informação jornalística.

Outros sustentam o dever de  respeito, por parte do jornalista, à ideologia imprimida pelo proprietário do meio de comunicação (com fundamento na liberdade de empresa que lhe assegura o poder de direção do empreendimento), desde que observada a esfera estritamente profissional do jornalista, vedando-se, assim, que o empresário imponha um dado tratamento especial  à divulgação das notícias ou até mesmo pratique uma censura privada.[41]

Não só a ideologia do proprietário da empresa de comunicação está protegida pelo âmbito normativo da liberdade de expressão, mas sobretudo as diversas ideologias espalhadas pela sociedade. A liberdade de informar é um direito mais denso que a liberdade de empresa, conforme se extrai de nossa Constituição, assegurando ao profissional da informação a recusa ao cumprimento de determinadas orientações que contradigam com deveres legais ou sejam contrárias às suas convicções políticas, religiosas ou sexuais.[42] Na hipótese de conflito entre os direitos fundamentais de liberdade da empresa e dos jornalistas não há uma resposta em abstrato. É no caso concreto, com toda a riqueza de suas circunstâncias, que será feita a ponderação dos bens constitucionais em conflito.

Os limites do direito à informação são dados pelos pressupostos e atributos que constituem o conceito de informação. Daí porque se entende que o direito de informação é mais restringido que a liberdade de expressão.  E mais, a delimitação do direito em análise há de decorrer de uma interpretação sistemática da Constituição a partir da análise dos diversos tipos de mensagens, bem como os demais direitos e liberdades fundamentais e os princípios e valores constitucionais.

A liberdade de informação jornalística é conformada conforme o seguinte dispositivo constitucional: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, IX). Dispõe, ainda, a Constituição que “nenhuma lei  conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade  de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado  o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV” (§1º do art. 220), bem como veda “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, §2º).

A liberdade de informação jornalística é, portanto, positivada sem a possibilidade de restrição legislativa. As possíveis restrições decorrem do próprio texto constitucional. A eventual lei restritiva à liberdade de informação apenas detalhará uma restrição efetuável no âmbito constitucional. A lei terá o efeito de declarar os limites ao exercício do direito fundamental estabelecidos em nível constitucional. No plano abstrato não é possível apontar, em termos legislativos, a solução para o conflito entre a liberdade de informação e outros bens constitucionalmente protegidos. No caso concreto é será resolvido o problema jurídico.[43]

A singularidade da televisão requer a análise da possibilidade de serem veiculadas mensagens por esse meio de comunicação social. É que as mensagens televisivas demandam a satisfação dos requisitos da informação. Ora, a comunicação pela televisão é, hegemonicamente, constituída por imagens. Estas não traduzem adequadamente as informações.

José Alberto de Melo Alexandrino explica que o discurso televisivo produz os seguintes efeitos perversos:

“1º)  – dissolve  a inteligibilidade e estruturação da mensagem; 2º) – reduz os níveis de objectividade e contextualização espácio-temporal da realidade narrada; e 3º) – introduz  uma perturbação emotiva que opera sobre a atenção do receptor”.

Conclui o autor que a televisão pode servir à expressão do pensamento, porém dificilmente serve à causa da informação.[44]

Além disso, a reflexão sobre as informações exige tempo, contudo, o discurso televisivo é construído a partir de intensa velocidade de imagens. As notícias veiculadas pela televisão, em muitos casos, estão acontecendo no mesmo instante. As informações tornam-se indiferentes para os emissores e para os telespectadores, razão pela qual, para elas serem percebidas, são usados mecanismos de sensacionalismo. A audiência, para ser atraída é motivada por um discurso emotivo.[45] A televisão, ao  agir sobre os sentidos, é mais eficaz em relação à sensibilidade que a inteligência.[46]

O direito de informação não produz o direito à criação ou ao acesso à televisão.  Entretanto, o direito à recepção da informação implica o dever de o Estado oferecer a garantia quanto ao pluralismo, diversidade de fontes, bem como remover os óbices ao gozo desse direito. A norma que trata do aludido direito  não produz diretamente  o direito à criação de meios materiais para a produção e veiculação mediante a televisão. [47]

O direito à informação atinge diretamente a prestação do serviço de televisão. A regra que o assegura impõe à atividade de televisão o conteúdo informativo. O legislador tem a tarefa de estipular o modo pelo qual tal conteúdo chegará até o público. Em havendo violação  da regra pelas emissoras sanções deverão ser aplicadas aos responsáveis.

4.  Direito à comunicação social

O direito de comunicar encontra-se amparado na norma constitucional que prevê a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV), bem como naquela que estabelece a expressão da atividade de comunicação (art. 5º, IX). Encontra-se especificamente regulado no capítulo destinado à Comunicação Social (arts. 220 a 224).

A liberdade de comunicação social nasce a partir da noção de liberdade de expressão, porém com ela não se confunde. É o que esclarece Jorge Miranda:

“embora estreitamente relacionadas, liberdade de expressão e liberdade de comunicação social não se confundem. A liberdade de expressão é mais que a liberdade de comunicação social, porquanto abrange todos e quaisquer meios de comunicação entre as pessoas – a palavra, a imagem, o livro, qualquer outro escrito, a correspondência escrita e por telecomunicações, o espectáculo etc.. Em contrapartida, a liberdade de comunicação social, ou, em geral, a problemática da comunicação social têm quer ver com outros valores, como a liberdade de religião, a liberdade de associação ou a liberdade de associação política e sindical, em geral com o pluralismo”[48].

Aluísio Ferreira preleciona ainda que os direitos à informação e à comunicação têm em comum o objetivo mediato – a informação, bem por excelência sobre qual cada um irradia seus efeitos. No entanto, a diferença entre os direitos fundamentais reside no objeto imediato, eis que o direito à informação consiste nas faculdades de colher e receber informações, por sua vez o direito à comunicação requer as faculdades de colher, receber e comunicar, pois a comunicação demanda imperiosamente o compartilhamento de informações. Para ele,  “Direito à comunicação significa direito a ter e a compartilhar informação, logo, o sujeito está no pleno gozo do seu direito quando dispõe da informação (por havê-la buscado ou recebido) e a transmite ou comunica”.[49]

Jorge Miranda estabelece um quadro comparativo entre a liberdade de comunicação social, a liberdade de expressão e a liberdade de informação, dispondo da seguinte forma: “A liberdade de comunicação social congloba a liberdade de expressão e a liberdade de informação, com três notas distintas: a) A pluralidade de destinatários, o caráter coletivo ou de massas, sem reciprocidade; b) O princípio da máxima difusão (ao contrário da comunicação privada ou correspondência, conexo com a reserva da intimidade da vida privada e familiar); c) A utilização de meios adequados – hoje, a imprensa escrita,  os meios audiovisuais e a cibernética”.[50]

A partir da afirmação normativa do direito à comunicação social é que deve ser interpretado o estatuto da radiodifusão.

No Brasil, o regime jurídico da televisão por radiodifusão conta com um estatuto especial a seguir detalhado.

A Constituição tem todo um capítulo dedicado à comunicação social. Confere-se à comunicação social o status de garantia, especialmente dos direitos fundamentais de livre manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, e de informação. Há o tratamento em conjunto dos meios de comunicação social, incluindo a tradicional imprensa escrita.[51] Estabelece-se, ainda, um regime mais rígido de regulação para o caso das emissoras de rádio e de televisão, com a adoção de princípios para a respectiva programação. E, preceitua-se a plenitude da liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação, proibindo qualquer espécie de censura.

A CF permite a qualificação da atividade de televisão na modalidade de radiodifusão como serviço público de titularidade da União que pode ser explorada pelos particulares mediante a obtenção de concessão ou permissão. Isto, no entanto, não significa que todo serviço de televisão possa ser qualificado commo serviço público.[52] Ao final, prevê a instituição do Conselho de Comunicação Social como órgão de colaboração do Congresso Nacional.[53]

Em seguida a reflexão sobre a livre iniciativa no campo da radiodifusão.

5.   Liberdade de iniciativa

A Constituição consagra o valor social da livre iniciativa como fundamento da República (art. 1º, IV) e da  ordem econômica (art. 170).

Tal liberdade deve ser compreendida à luz do princípio da livre concorrência (art. 170, IV).

A liberdade de iniciativa econômica em sua modalidade liberdade de empresa manifesta-se pela possibilidade de a empresa concorrer no mercado com outras que operam no mesmo setor econômico.

Trata-se de um direito fundamental autônomo em face do princípio da livre concorrência. É possível que exista a liberdade de empresa ainda que não haja a livre concorrência no mercado. Paradoxalmente, sob uma perspectiva liberal, a livre concorrência limita a liberdade de iniciativa. Para assegurar a livre concorrência, a Constituição impõe ao legislador a tarefa de reprimir o abuso do poder econômico que objetive à dominação dos mercados, à eliminação da própria concorrência e ao aumento arbitrário de lucros (art. 173, §4º). A edição de leis antitrust tem exatamente o propósito de assegurar a concorrência no mercado de todos contra todos, mediante a intervenção estatal. Além disso, a Constituição impõe ao Estado o dever de regular a atividade econômica, mediante ações de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174).

A Constituição dedica todo um capítulo à Ordem Econômica, que, no entanto, para ser aplicado exige do operador jurídico a atenção às demais normas constitucionais.[54] A CF é uma obra do Poder Constituinte, construída pelas mais diferentes forças políticas em atuação no cenário social. Como ela é resultado de um compromisso entre essas forças, vem a cristalizar os mais diversos interesses  econômicos, políticos e sociais. Não é fruto de uma única ideologia, mas o produto de diversas que dominavam o cenário nacional no contexto de 1988. Houve, assim, a adoção de um regime econômico definitivo para o País, qual seja, o sistema capitalista. Contudo, tal modelo foi influenciado por outros valores. Existem consagra valores antagônicos, como, por exemplo, o princípio da livre iniciativa e o da iniciativa pública, incluído aí o serviço público. [55]

A livre iniciativa constitui-se em fundamento da ordem econômica, no entanto deve ser concretizada com o objetivo de atingir uma existência digna a todos.

Trata-se, portanto, de uma liberdade que se consubstancia em instrumento de atingimento da existência digna. São as pessoas as responsáveis pela direção de suas próprias vidas, significando isso escolher entre as alternativas na busca da satisfação de seus interesses. A livre iniciativa é um valor social, razão pela qual  a ação de uma pessoa também é vista como instrumento de realização dos direitos fundamentais dos demais indivíduos.

Além disso, como revela Eros Roberto Grau, a liberdade de iniciativa econômica não pode ser compreendida exclusivamente como “liberdade de desenvolvimento da empresa” ou como “princípio do liberalismo econômico”. É que a liberdade de iniciativa econômica  é muito mais ampla, pois abrange todas as formas de produção, individuais ou coletivas.[56] E mais, com bastante clareza o autor explica que a liberdade de iniciativa econômica não está ligada exclusivamente à propriedade, mas também ao trabalho.[57]

Por outro lado, José Afonso da Silva entende que a liberdade de iniciativa econômica abrange a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato.[58]

José Alberto de Melo Alexandrino ensina que a liberdade econômica apresenta diversas espécies: a) liberdade de contratar; b) a liberdade de trabalho; c) liberdade de empresa e d) liberdade de consumo. Em sentido estrito, a liberdade econômica abrange tão-somente a liberdade de produção – iniciativa individual ou coletiva tendente à satisfação de necessidades –  e a liberdade de consumo – atividade de satisfação das necessidades das pessoas.[59]

Eduardo J. Rodriguez Chirillo desenha os contornos da liberdade de empresa da seguinte forma:

“A liberdade de empresa pode ser conceituada como todo o direito a empreender e combinar os meios de produção na ordem de produção, transformação, ou distribuição  de bens e serviços, estabelecendo sua organização  e exercendo sua direção. A singularidade da liberdade de empresa é representada pela organização, reunião e combinação dos fatores de produção no exercício de atividades”.[60]

A adoção de mecanismos de competição parte do pressuposto de que este modelo é a melhor garantia dos direitos fundamentais – políticos e econômicos.[61] A competição não é um valor absoluto, pois existem determinados casos em que a Constituição permite a concentração de empresas em dado setor econômico. As modificações sociais operadas por novas tecnologias permitem a remodelagem dos serviços públicos. Atualmente, em determinados casos, é possível conciliar a regulação dos serviços públicos, por meio da competição entre os agentes econômicos que desempenham a atividade, objeto de concessão ou permissão. Há a tendência de a competição ser utilizada como instrumento de regulação dos serviços públicos e, assim, promover a reconstrução do mercado.[62]

Alguns autores advogam a tese de que a liberdade de empresa  no campo da comunicação social acaba por negar a liberdade de expressão. Afirma-se que o efetivo acesso ao meio de comunicação para expressar idéias ou sentimentos é negado em razão da lógica de mercado que preside a empresa informativa. Outro argumento é o de que a informação é um bem público, razão pela qual não poderia ser apropriado por empresas privadas de comunicação.[63]

Fábio Konder Comparato é um dos defensores da total estatização dos meios de comunicação social. O autor sustenta que a comunicação social, em uma sociedade democrática, é matéria de interesse público, quer dizer, pertence ao povo, razão pela qual não é admissível a apropriação privada dos meios de comunicação de massa. Outro fundamento é o da radical incompatibilidade  entre o sistema capitalista com a democracia (o regime econômico é por natureza oligárquico). E, por último, a necessidade de superação da dicotomia sociedade civil-Estado.[64] Propõe o jurista a proibição da organização dos veículos de comunicação sob a forma de empresa capitalista, devendo-se adotar a forma de associações sem fins lucrativos, cooperativas ou fundações públicas ou privadas. A estrutura de poder dessas entidades seria desconcentrada, a fim de possibilitar a gestão democrática pelos interessados.  Advoga-se, ainda, o livre acesso às vias de comunicação, mediante a ampliação do direito de resposta e a introdução do direito de antena.

Em postura de contestação, Guilherme Doring Cunha Pereira apresenta suas críticas à referida proposta para a regulação dos meios de comunicação social, concluindo que: a) a informação não pertence à res publica, mas tão-somente os meios de comunicação social – a apropriação privada dos benefícios econômicos que a informação proporciona não é incompatível com a natureza pública do bem; b) não é razoável a exclusão das empresas privadas em geral do campo da comunicação social –  o Estado, ao invés de excluir, deve exigir que as empresas cumpram com sua função social; c) não é aconselhável a separação entre o controle editorial e o controle empresarial – restrição a que o empreendedor não possa dar a orientação que aspira ao seu empreendimento conduz à asfixia da própria iniciativa; d) a iniciativa econômica privada no campo da comunicação social, no atual estágio de complexidade e desenvolvimento da sociedade brasileira, é uma necessidade inafastável – pode-se dizer que a liberdade de expressão depende da liberdade de iniciativa econômica.[65]

É importante que tanto a posição de Fábio Konder Comparato quanto a de Guilherme Pereira sejam analisadas à luz do Direito constitucional alemão, na interpretação dada pelo Tribunal Constitucional. Na Alemanha, a Lei Fundamental reconhece a liberdade de emissão de televisão, não faz, entretanto, remissão expressa à televisão privada (radiotelevisão). Apesar disso, o Tribunal Constitucional reconheceu a existência da televisão privada.[66]

Inicialmente, entendia-se que a Constituição não exigia o monopólio público da atividade de televisão, tampouco a gestão direta por entidades públicas, seja em nível federal, seja em nível estadual. Note-se, ainda, que uma das características do federalismo alemão é a efetiva repartição de competências em matéria de televisão entre os Länder (Estados). Admitiu-se a gestão privada da atividade de televisão, desde que fosse assegurada a oportunidade de participação de todas as forças sociais relevantes. Reconheceu-se a competência do legislador para disciplinar o sistema de televisão em garantia do pluralismo, equilíbrio, objetividade e impugnação da programação. Além disso, a jurisprudência constitucional adotou o critério da orientação pessoal dos direitos fundamentais. Quer dizer, o âmbito normativo dos direitos fundamentais serve para proteger pessoas físicas, razão pela qual desaparece a dimensão pessoal e são ampliadas as possibilidades de intervenção legislativa.[67]

Em segundo momento, o Tribunal, ao apreciar a questão da constitucionalidade da lei da  Baixa Saxônia, que instituía a radiotelevisão privada, não declarou sua inconstitucionalidade, apenas fez uma diferenciação entre os papéis da televisão pública e privada. Considera-se que essa decisão é o fundamento jurídico para a implantação do sistema dual de televisão (pública e privada).[68]  Debateu-se intensamente em torno da repartição de funções entre a televisão privada e a televisão pública, sobretudo quando o Tribunal Constitucional chegou a se posicionar no sentido de que cabe à televisão pública a responsabilidade de assegurar a prestação fundamental de televisão (Grundversorgung), enquanto a televisão  privada tem uma função complementar dentro do sistema. Tratava-se de saber se as obrigações decorrentes da Constituição para a televisão aplicam-se uniformemente aos canais públicos e privados.[69]

Primeiro,  a televisão pública deve adotar o meio técnico que garanta a recepção pela generalidade da população. Isso significa que a televisão pública requer a adoção do serviço de radiodifusão por ondas terrestres, excluindo-se a televisão por satélite e por cabo.[70]

Segundo, é preciso estabelecer um conteúdo mínimo da programação, compatível com a função essencial da radiodifusão em um Estado democrático, principalmente a cultura do país. Tal tarefa só pode ser conduzida pela televisão pública, uma vez que não está orientada pela publicidade comercial e pela obtenção de índices de audiência.[71]

Terceiro, exige-se uma adequada organização dos procedimentos, que assegurem um equilibrado pluralismo na transmissão das diferentes correntes de opinião. A prestação fundamental de televisão    (Grundversorgung) não significa uma repartição de programas entre a televisão    pública e a privada, de modo que apenas a televisão pública dela se ocupe, reservando-se à televisão privada programas que não tenham esse caráter de prestação essencial. É possível que a própria televisão pública transmita programas atrativos para as massas.[72].

À luz dessas considerações, é possível apresentar as seguintes conclusões:

a) a Constituição brasileira impõe ao Estado o dever de garantir o sistema de comunicação social, de modo a observar o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privados, públicos e estatais;

b) há a garantia de desenvolvimento do sistema de comunicação social de forma a proteger o processo de comunicação da sociedade brasileira;

c) isto implica no dever de o Estado criar e manter emissoras de televisão  estatais e garantir a existência das públicas;

d) não há proibição da operação de televisões por empresa privadas;

e) mesmo as empresas privadas de televisão estão constitucionalmente obrigadas a ofertar  programação de forma a respeitar o  princípio do pluralismo  equilibrado, permitindo a transmissão das diversas opiniões existentes na sociedade;

f) em outras palavras, o serviço de televisão não é propriamente nem do Estado, nem dos proprietários de empresas de comunicação, mas sim da sociedade. Todo e qualquer veículo de comunicação, estatal ou privado, está condicionado à observância de um conteúdo mínimo fixado pela Constituição.

                        A título de conclusão, a liberdade constitucional de iniciativa não é capaz de fundar o direito de acesso à difusão da atividade de televisão. Trata-se, em verdade, de um direito fundamental que carece de intervenção legislativa. A produção econômica de programas e a recepção ou consumo de programas e mensagens gozam de um âmbito ampliado: a primeira, por não existirem razões especiais que a devam condicionar; a segunda, por beneficiar da proteção concedida pela liberdade de recepção e pela garantia institucional do pluralismo.[73]                     

A questão carece de intervenção legislativa para a definição do perfil do direito fundamental em questão. Conforme o autor lusitano José Carlos Vieira de Andrade, que “o exercício dos direitos fundamentais, no espaço, no tempo e modo, só será muitas vezes (inteiramente) eficaz se houver medidas concretas que, desenvolvendo a norma constitucional, disciplinem o uso e previnam o conflito ou proíbam o abuso e a violação dos direitos”.[74] No caso em questão, uma das primeiras  tarefas do legislador é a resolução do conflito entre a livre iniciativa ou liberdade de empresa e o princípio do serviço público.[75]

6. Direito à educação

A Constituição assegura o direito social à educação (art. 6º).

Tal direito deve ser analisado sob o contexto dos objetivos fundamentais da República do Brasil: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional, a eliminação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem quaisquer discriminações (art. 3º)..

Tais objetivos exigem a concretização do direito fundamental à educação.

Além disto, a Constituição prevê que a educação serve ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205). Igualmente, impõe como dever do Estado assegurar o ensino fundamental obrigatório e gratuito (art. 208).

A adequada formação educacional do povo, considerado como destinatário das prestações civilizatórias do Estado, no dizer de Friedrich Müller[76], é que permite a conscientização a respeito de sua condição existencial: descobrir-se como agente histórico e não como sujeito à história. Também, possibilita a capacitação profissional, para fins de integração no mercado de trabalho. A educação conduzida de forma a respeitar  o princípio da diferença entre as populações dos diversos Estados brasileiros propicia, ainda, a redução das desigualdades sociais e regionais.

Mas, o que é a educação?

É, conforme demonstra Maria Aparecida Baccega, um processo social, no qual se está inserido ao nascer, através do qual, por intermédio da “palavra” são recebidas as análises da realidade feitas pelas gerações anteriores, as condutas, os preconceitos e os modos de ver e de pensar. Além desta função receptiva, o processo educacional tem uma função prospectiva, isto é, a possibilidade de construir o novo e, assim, fazer a história.[77]  Ou, como explica Jean Piaget, a educação intelectual é “o direito de ser colocado, durante a sua formação, em um meio escolar de tal ordem que lhe seja possível chegar a ponto de elaborar, até a conclusão, os instrumentos indispensáveis de adaptação que são as operações da lógica”.[78]

Por outro lado, a educação moral, conforme revela Marcos Maliska, citando Piaget, “é ainda mais evidente que, se algumas condições inatas (naturais) permitem ao ser humano a construção de regras e sentimentos morais, essa elaboração presume a intervenção de um conjunto de relações sociais bem definidas (da família, por exemplo)”.[79] Maliska, conjugando as duas espécies de educação, afirma o seguinte:

“A educação como direito de todos, portanto, não se limita em assegurar a possibilidade da leitura, da escrita e do cálculo. A rigor, deve garantir a todos ´o pleno desenvolvimento de suas funções mentais e a aquisição dos conhecimentos, bem como dos valores morais que correspondam ao exercício dessas funções, até a adaptação à vida social atual’.[80]

Por outro lado, a educação não é um processo privativo da escola, pois existem outras instituições sociais, igualmente responsáveis pela aprendizagem. Os meios de comunicação social têm, também, na forma da lei, a função de educar, embora em menor escala, que o centro educacional em sentido formal.[81] Portanto, a norma que trata do direito fundamental à educação exige políticas públicas de modo a abranger a televisão como um meio importante para a sua respectiva efetivação.

Um dos pressupostos para o acesso ao conhecimento é o domínio da linguagem. Daí a importância da educação quanto ao acesso da população aos códigos lingüísticos. O código lingüístico de um analfabeto ou semi-analfabeto está diretamente associado a estruturas mentais de pensamento limitadas, pois a pessoa, ao ser incapaz de dominar a linguagem, torna-se incapaz de abstrair e generalizar, ferramentas imprescindíveis para o desenvolvimento do raciocínio.[82]           

Apesar das disposições constitucionais, um dos graves problemas quanto ao ensino é a desvalorização do conhecimento como um bem em si mesmo. Atualmente, as políticas públicas orientam-se pelo ensino como aptidão técnica, daí a procura por cursos conhecidos como profissionalizantes, seja em nível de segundo ou seja de terceiro grau. O conhecimento nada mais é do que uma atitude mental contemplativa diante do mundo, ao invés de ser uma ferramenta à disposição da produção de utilidades. A sua importância é sintetizada de uma maneira bem singular por  Bertrand Russel: “penso que a ação é melhor quando provém de uma profunda percepção do universo e do destino humano e não de ferozes impulsos passionais de auto-afirmação, românticos, mas desproporcionados”.[83]  Entretanto, os novos meios de comunicação social, como é o caso da televisão, estão voltados para a ação, não para a contemplação.[84]

Edgar Morin apresenta os saberes necessários  no século XXI:  

                        a) o ensino da própria natureza do conhecimento humano, sobretudo suas características cerebrais, mentais e culturais, evitando-se subestimar o erro, bem como a ilusão.

b) a ligação entre a parte e o todo do conhecimento, evitando-se o conhecimento fragmentado das disciplinas escolares.

c) o ensino da condição humana, quer dizer, apresentar o homem como ser físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico;

d) prestigiar o ensino da identidade humana, quer dizer, que os seres humanos partilham os mesmos problemas diante da vida e da morte;

e) apresentação das incertezas que estão presentes nas ciências, abandonando-se, assim, as concepções deterministas da história da humanidade;

f) ensinar a compreensão como meio e fim da comunicação humana, mostrando-se, dessa forma, as causas do racismo, da xenofobia e do desprezo;

g) ensinar a ética do gênero humano levando-se em consideração o caráter ternário da condição humana, quer dizer, que o homem é ao mesmo tempo indivíduo, sociedade e espécie, o que conduz à compreensão do desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e da consciência de pertencer à espécie humana.[85]

O acesso à televisão não exige alfabetização completa, pois qualquer pessoa pode acessar seu conteúdo sem contar com uma educação formal. Daí a grande força persuasiva deste meio de comunicação sobre esse público.

Quanto às crianças e aos adolescentes o problema é que eles estão ainda em processo de constituição da personalidade, ocorrendo a aprendizagem mediante mecanismos psicológicos de imitação e identificação. Portanto, os personagens que  aparecem nas cenas da televisão podem vir a ter impacto direto sobre o comportamento dos jovens. As pesquisas sobre a violência na televisão divergem entre si; umas demonstram que a televisão influencia a conduta dos público infanto-juvenil, outras dizem que não há  nexo de causalidade entre a cena violenta da televisão e o comportamento violento. As organizações internacionais, que tratam de promover a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, amparadas pela Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança[86], propõem que os países adotem medidas  educativas quanto à mídia. Quer dizer, pretendem promover a capacitação dos alunos para se relacionar de uma forma participativa com a mídia, bem como compreender as mensagens por ela veiculadas. Essa função de educação dos menores quanto à mídia é atribuída, sobretudo à escola e à família e, em menor escala, aos próprios produtores de programas de televisão. A educação em mídia revela-se um importante fator de minimização dos efeitos nocivos sobre as crianças e adolescentes dos programas televisivos inadequados e de péssima qualidade, cujo conteúdo está voltado para cenas de degradação humana, sexo, violência, dentre outros.[87]

7.  Direito à cultura

A Constituição protege a cultura, porém não em sua dimensão antropológica.

É o que explica José Afonso da Silva: “É importante ter isso em mente, porque a Constituição não ampara a cultura na extensão de sua concepção antropológica, mas no sentido de um sistema de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216)”.[88]

A Constituição afirma o dever estatal a garantia de acesso integral ao exercício de direitos culturais e às fontes de cultura nacional, bem como o estímulo à valorização e à difusão das manifestações culturais representadas por culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e grupos participantes da civilização brasileira.[89]

Além disso, a CF discrimina os bens constituintes do patrimônio cultural brasileiro, quais sejam, as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, e edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais e os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.[90]

Como visto acima, a CF afirma que há o dever estatal de garantir o acesso ao exercício de direitos culturais. Segundo José Afonso da Silva, os direitos culturais reconhecidos pelo texto constitucional são os seguintes:

“(a) liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica; (b) direito de criação cultural, compreendidas as criações artísticas, científicas e tecnológicas; (c) direito de acesso às fontes da cultura nacional; (d) direito de difusão  das manifestações culturais; (e) direito de proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; (f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura – que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico  especial, como forma de propriedade de interesse público”.[91]

Existem diversas formas de expressão cultural. O correto é falar em culturas e não em cultura como fenômeno único. Há um universo cultural que precisa ser desvendado pelo intérprete, adotando-se para a identificação da cultura o critério do grupo social que a manifesta.  Daí há a cultura elitista, a cultura popular e a cultura de massas.

A cultura elitista, alta cultura ou erudita é aquela produzida e propagada pela elite dominante no país. São as estruturas oligárquicas que reservam a um número pequeno a fruição de bens culturais, como fator de diferenciação em relação às demais classes sociais. A cultura assume a função de identificação de um determinado bloco histórico e diferenciação em relação a outros grupos sociais, a partir da comunhão de um determinado imaginário coletivo. A cultura erudita é aquela que designa a cultura acadêmica, sobretudo refere-se à cultura artística adquirida ou aperfeiçoada em escolas de Arte nacionais ou estrangeiras. Apesar de a Constituição não fazer menção à cultura erudita, ela é protegida pelo sistema constitucional, devendo-se isto ao fato de que, ao contrário do que aconteceu com as manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, sempre tiveram o apoio oficial.[92]

Por outro lado, algumas considerações precisam ser feitas no que tange à cultura de massas. Com o advento da indústria cultural foi possível a produção em larga de escala de bens culturais para serem consumidos pela população. Laurindo Leal Filho, explica que:  “é apresentada como um exemplo rico de realização do ´bloco histórico´, vinculada que é, a um só tempo, à base material da sociedade e à produção de concepções globais do mundo”.[93]

Umberto Eco expõe os argumentos favoráveis à cultura de massas dos mass-media. Diz que a cultura de massas não é uma forma típica do capitalismo, mas um efeito inevitável das sociedades industriais. A cultura de massas não tem a intenção de substituir o lugar da cultura de alto nível, eis que sua difusão se dá entre as camadas da população que até então não tinham acesso a formas de expressão cultural. O caráter negativo que se atribui ao papel da informação difundida pelos mass-media, no que tange ao favorecimento de mudanças na percepção da realidade, nada mais é do que reflexo da ideologia aristocrática dos críticos dos meios de comunicação social. A massa sempre apreciou o aspecto circense, razão pela qual nada mais fazem do que guiá-la nesse aspecto lúdico da vida. Não é verdade, portanto, que o entretenimento difundido é utilizado por razões de dominação social. A homogeneização dos gostos promove tendencialmente a eliminação das diferenças entre castas. A popularização das idéias mediante a difusão de obras de grande valor cultural, ainda que esgote a capacidade de assimilação, é um fenômeno próprio  do consumo desta época. O acúmulo de informações e de dados fragmentados propicia a participação do homem moderno nos acontecimentos sociais. Por fim, não é correto dizer que os meios de comunicação sejam conservadores do ponto de vista estilístico porque, ao contrário, promoveram grandes modificações artísticas.[94]

O citado autor, agora em postura de contestação, diz que a indústria cultural não promove uma cultura autêntica, pois a mesma acaba sendo nivelada de acordo com o gosto do consumidor mediano. Os mass-media destroem as características identificadoras dos grupos étnicos em razão da defesa da cultura homogênea. O público a que se dirigem os mass-media não tem consciência sobre si mesmos, oscila conforme as leis da oferta e da procura, razão pela qual seus desejos são direcionados pela publicidade. Tais meios estimulam a percepção de questões secundárias, promove-se a banalização de símbolos e mitos. O seu objetivo é a uniformidade e planificação obrigatória das consciências, ainda que no contexto de uma sociedade de bem-estar no qual os indivíduos contam com as mesmas oportunidades no terreno cultural.

Por sua vez, a cultura popular é caracterizada pelo fato de nascer espontaneamente do povo, constituindo-se por um conjunto de práticas populares que unem simbolicamente os grupos sociais, geralmente aqueles localizados na base da pirâmide social. Como exemplos de cultura popular tem-se a literatura de cordel, as festas, a gastronomia, as danças, a música, os mitos, as lendas, os ritos, dentre outros.

Sobre o assunto, esclarece  José Afonso da Silva:

“A cultura de raiz popular forjou-se no cerne da vida simples do povo. A inventiva popular foi criando formas de fazer e de viver ao mesmo tempo em que ia construindo a essência da nacionalidade, a despeito das elites, que cultivavam a cultura erudita, a cultura das classes superiores, cultura transplantada. As culturas índias e africanas no Brasil constituem a fonte da cultura popular entre nós, ainda que se assinale influência portuguesa em vários campos culturais; cultura transplantada que se popularizou.[95]

Marilena Chauí aponta a distinção entre cultura popular e cultura do povo, pois o fato de considerar a cultura como sendo do povo não quer significar que ela simplesmente está no povo, mas, ao contrário, que ela é produzida pelo próprio povo. Ela conclui que não é porque algo está no povo que é necessariamente do povo.[96] Basicamente, o critério de diferenciação consiste em quem produz a cultura: se é o próprio povo, tem-se a cultura do povo; ao contrário se a cultura é produzida por uma elite e difundida ao povo, tem-se a cultura popular.

A televisão é importante meio de acesso à cultura. É certo que existem formas de expressão cultural cuja divulgação é inviável pela televisão. É relevante a disciplina jurídica desse meio técnico, a fim de ampliar a difusão da cultura no Brasil. A programação de televisão representa a cultura que vige no país, sobretudo aquela produzida pela indústria cultural. Tem-se na televisão a hegemonia da cultura de massa, aquela imposta dos produtores para os consumidores-telespectadores. A cultura erudita e a popular (cultura do povo) tem pouco espaço na televisão  generalista, salvo no caso da TV Pública.

Com efeito, as televisões públicas constituem-se na melhor reserva para a difusão da pluralidade cultural brasileira, uma vez que não estão presas às pressões da audiência. Ocorre que para isso acontecer faz-se necessária a independência do poder político, do ponto de vista de sua estrutura jurídico-institucional, acompanhada de sua independência financeira. A “televisão  pública” não deve ter nem caráter comercial, nem governamental, daí a possibilidade de se alcançar uma programação de qualidade dirigida à diversidade cultural.[97] Portanto, é necessário que o Estado obrigue ou, ao menos, estimule a difusão de canais ou programas culturais. No caso da televisão generalista, se é certo que não é possível a divulgação de um canal cultural, em razão da natureza do meio, ao menos se deve exigir a divulgação de programas culturais. Por sua vez no caso da televisão segmentada é perfeitamente admissível a exigência de criação de canais culturais, sobretudo pelo fato de o meio de difusão permitir uma maior pluralidade de oferta audiovisual.

A definição de programa cultural de televisão não pode ficar ao arbítrio das emissoras de televisão. É fundamental que um órgão representativo da sociedade estabeleça, a partir da lei e/ou do âmbito normativo  do direito fundamental à cultura, quais os critérios para a identificação de um programa cultural. A eleição desses critérios há de levar em contar as diversas formas de expressão cultural presentes na sociedade brasileira. A televisão há de ser o canal difusor não só da cultura de massas, mas da cultura erudita e do povo. Trata-se da ampliação do conceito de cultura para além dos parâmetros clássicos, de forma a incluir temas atuais de interesse popular. Afinal, cultura é também carnaval e futebol. Não há em si uma contradição entre programas culturais e divertimento. É possível estabelecer uma fórmula que combine ingredientes culturais e de entretenimento na televisão. Sabe-se que o programador há de considerar o interesse da audiência. Ocorre que o parâmetro da audiência não implica a adoção de uma programação exclusivamente voltada para a obtenção de índices elevados de audiência. Diante disso, a formatação de programas culturais deve se orientar a minorias, mas também ao interesse da maioria.[98]

8.  Direito ao entretenimento

Para os fins do presente trabalho, o sentido da palavra lazer será equivalente ao de entretenimento.

A Constituição consagra o direito social ao lazer (art. 7º).

Em outro capítulo, a Constituição reconhece o direito ao lazer para as crianças e adolescentes (art. 227). Essas normas constitucionais se limitam a enunciar o direito fundamental social ao lazer, nada mais dizendo sobre o seu respectivo conteúdo e alcance. Diante desse elevado grau de indeterminação do âmbito normativo, e especialmente do modo como o Estado atuará para concretizá-lo, é preciso que o legislador intervenha de modo a concretizar o conteúdo do direito fundamental ao lazer. Além disso, quando trata do desporto, a Constituição dispõe que o Poder Público incentivará o lazer como forma de promoção social (art. 217, §3º) Trata-se de uma norma de caráter nitidamente programático, a qual exige a intervenção legislativa que atribua ao Poder Público a tarefa de organizar os meios pelos quais será concretizado o lazer como forma de integração social.

Celso Fiorillo explica que o lazer, como direito social catalogado  na Carta Constitucional, trata-se de um direito ao descanso, caracterizando-se como um dos aspectos fundamentais concernentes à dignidade da pessoa humana. Segundo ele, a dignidade humana encontra-se em uma sociedade em que é necessário ter um emprego para sobreviver, daí porque o lazer garante não só o equilíbrio físico-psíquico, como também possibilita a aquisição da energia necessária para a continuidade do trabalho.[99]

Joffre Dumazedier propõe o seguinte sentido para o lazer:

“O lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações  profissionais, familiares e sociais”.  E, a partir desse conceito, o  autor extrai as seguintes funções para o lazer: a) função de descanso; b) função de divertimento, recreação e entretenimento; c) função de desenvolvimento.[100]

Os lazeres na vida cotidiana estão diretamente associados à idéia de cultura de uma sociedade, igualmente  dependendo da carga horária de trabalho das pessoas. Nesse sentido, conforme revela o citado autor, para um homem que trabalha, será uma atividade de lazer qualquer participação ativa na vida cultural da sociedade, ou seja, em toda e qualquer atividade de criação ou compreensão de um produto cultural. Esta forma de participação concorre com outras atividades de lazer, sobretudo as ligadas ao descanso e à recreação. No contexto atual, constitui lazer tanto ler uma obra literária quanto ir ao teatro e cinema, assistir a um espetáculo de dança, visitar amigos, brincar, dançar, fazer consertos domésticos ou viagens turísticas. Quer dizer, cada uma destas atividades tem forte conteúdo cultural, confundindo-se  o conteúdo da cultura popular com o do lazer popular. Portanto, pode-se identificar a cultura de uma pessoa ou grupo pelos lazeres por eles adotados.[101]

A organização do espaço do lazer na vida do  povo brasileiro tem alguns dados surpreendentes.[102] A televisão é o principal meio de lazer e entretenimento da maioria da população brasileira, no caso da televisão aberta.

Por sua vez,  o público da televisão por assinatura conta com diversas alternativas de lazer. Diante desse fato, é muito mais justificável a intervenção legislativa, em concretização ao direito fundamental ao lazer, no caso da televisão aberta de modo a possibilitar ao público uma programação de televisão que atenda suas necessidades de entretenimento. Além disso, a intervenção legislativa para sua  concretização há de ser conduzida conforme o conceito sociológico de lazer acima apresentado.

Um dos graves problemas contemporâneos é o caráter excessivo de dedicação das operadoras de televisão ao entretenimento. A própria atividade de difusão de informações jornalísticas tem assumido o caráter de espetáculo,  razão pela qual fala-se em “jornalismo-entretenimento”. Quer dizer, a produção de telejornais com preferências por matérias com forte apelo emocional que apresentam imagens de celebridades e cenas violentas.[103]

A crítica de Hannah Arendt quanto à crise da cultura contemporânea reside exatamente no predomínio da diversão, ao invés de o ser humano dedicar-se parte de seu tempo em atividades de elevação do espírito. A diversão é organizada conforme a lógica dos produtores e consumidores da indústria cultural. Para Hannah Arendt, seria preciso privilegiar a cultura do ócio, isto é, uma cultura que provocasse o afastamento provisório do mundo das aparências e que permitisse o pensar.[104] Em uma ótica  marxista, segundo Barbara Freitag,  o lazer seria o espaço de tempo entre o trabalho e o descanso afetado à lógica da produção da indústria cultural, que possibilitaria ao trabalhador recompor suas forças, esquecendo-se da realidade miserável que o circunda[105]. Quer dizer, ainda que o trabalhador não esteja produzindo durante o seu lazer está, diante da televisão, consumindo bens produzidos pela indústria cultural. O espaço de lazer torna-se, portanto, um espaço para consumo, imediato e mediato, de objetos simbólicos.

O direito ao lazer não vincula diretamente a programação das emissoras de televisão. A sua textura constitucional permite ao legislador grande margem quanto à concretização de sua tríplice função: descanso, divertimento e a desenvolvimento da personalidade. Desse modo, a organização do conteúdo do serviço de televisão há de se pautar nessas três funções do conceito sociológico de lazer. O legislador deve desenhar com equilíbrio a intensidade com que o lazer será promovido pelo serviço de televisão.  Nesse sentido, a falta de adequada dosagem legislativa na regulação do direito ao lazer levará, certamente, à não efetividade de outros direitos fundamentais como, por exemplo, o direito à educação, à cultura e à informação.

Com efeito, em razão de norma constitucional do art. 221 da CF, os programas de televisão têm o conteúdo mínimo, o qual consiste na preferência por finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Todavia, a referida norma não prevê que a programação de televisão destine-se a finalidades de lazer. Ainda que não haja uma exigência constitucional, nada impede que o legislador ao concretizar o referido direito fundamental, venha a estabelecer que a programação de televisão se dedique à difusão do entretenimento.

9. Conclusões

A constitucionalização dos serviços de radiodifusão ocorrida na Constituição de 1988 implica em diversas conseqüências no ordenamento jurídico.

A fundamental é a imposição ao legislador do dever de respeitar a organização policêntrica do sistema de comunicação social, por intermédio da disciplina dos sistemas privado, público e estatal. Isto é o legislador tem o dever de organizar os serviços de TV por radiodifusão, com o reconhecimento de espaços específicos para a TV privada, a TV pública e a TV estatal.

Primeiro, o regime de direitos fundamentais da CF exige a interpretação do bloco de normas relativas à Comunicação Social, precisamente aquelas que tratam dos serviços de radiodifusão,  de modo a maximizar a sua aplicação prática.

Assim, o legislador, ao organizar o setor de radiodifusão, obrigatoriamente há de respeitar as linhas gerais em defesa da realização dos direitos fundamentais, mediante os serviços de televisão por radiodifusão.

Segundo, nenhum dos direitos fundamentais analisados é capaz de assegurar diretamente o direito à exploração do serviço de TV por radiodifusão, eis que  é necessária maior densificação legislativa para sua operacionalização.

Terceiro, o bloco de direitos fundamentais exige a adoção de políticas públicas favoráveis à ampliação da entrada de novos operadores nos sistemas de radiodifusão. Há a garantia de acesso à programação de TV por radiodifusão aos indivíduos e grupos sociais.


[1] José Afonso Silva manifesta-se sobre a liberdade de pensamento da seguinte forma: “A liberdade de pensamento – segundo Sampaio Dória – ´é o direito de exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião, arte, ou o que for`. Trata-se de liberdade de conteúdo intelectual e supõe  o contacto do indivíduo com seus semelhantes, pela qual ´o homem tenda, por exemplo, a participar a outros suas crenças, seus conhecimentos, sua concepção de mundo, suas opiniões políticas ou religiosas, seus trabalhos científicos”. Cf. Direito constitucional positivo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 244.

[2] FERREIRA, Aluízio. Direito à informação, direito à comunicação: direitos fundamentais na Constituição brasileira. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1997, p. 179. Aliás, entrou em vigor a Lei nº. 10.222/2001, que proíbe as emissoras de rádio e televisão de aumentarem som nos intervalos comerciais, estratégia esta utilizada como recurso subliminar para chamar a atenção do público em relação às mensagens veiculadas.

[3] ALEXANDRINO, José Alberto de Melo. Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 97.

[4] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. tomo IV. 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 453.

[5] ALEXANDRINO, José Alberto de Melo. Obra citada, p. 86.

[6] BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Colisão entre direitos fundamentais: liberdade de expressão versus direito à honra. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da UFPR. Trabalho inédito, p. 55, 2001.

[7] Sobre o assunto: BASTOS, Celso Ribeiro. Os limites à liberdade de expressão na Constituição da República. In Revista Forense nº. 349,  p. 43-51,  janeiro-fevereiro-março de 2000.

[8] Ibid., p. 94.

[9] LOPES, Mauricio Ribeiro. Ação Civil Pública e a Tutela de Interesse Difuso da Infância: Proteção da Imagem e dos Direitos da Personalidade – Programas de Televisão. In  Revista de Processo nº. 92,  p. 296-297, outubro/dezembro de 1998.

[10] A liberdade de expressão tem campos particulares de manifestação. É o caso, por exemplo, do direito à cultura, que nada mais é do que a liberdade de expressão no campo cultural. A proteção constitucional recai sobre diversas manifestações culturais constituintes da sociedade brasileira, como é o caso das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras (CF, art. 215, §1º). Conferir: SILVA, José Afonso. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p.46-52.

[11] Uma hipótese de suspensão legítima da atividade de radiodifusão consiste na declaração do Estado de Sítio nos termos do art. 139, II, da Constituição Federal. Tal dispositivo constitucional requer que o legislador defina as hipóteses de restrições relativas “à prestação de informações, e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão “.

[12] LOPES, Vera Maria de Oliveira Nusdeo. O direito à informação e as concessões de rádio e televisão.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 319-320.

[13] SILVEIRA, Paulo Fernando. Rádios comunitárias. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 106-8.

[14] SOUZA, Nuno. A liberdade de imprensa. Coimbra: Coimbra Editora,  1994, p. 147-148.

[15] Nessa questão, a Constituição portuguesa é um modelo exemplar, pois, além de assegurar o direito de antena aos partidos políticos, igualmente o garante às organizações sindicais, profissionais e representativas das atividades econômicas.

[16] ALEXANDRINO, José de Melo. Op. cit., p. 108-111.

[17] Além da previsão constitucional, o direito de resposta está previsto na Lei de Imprensa da seguinte maneira: “Art. 29. Toda pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade pública, que for acusado ou ofendido em publicação feita em jornal ou periódico, ou em transmissão de radiodifusão, ou a cujo respeito os meios de informação e divulgação veicularem fato inverídico ou, errôneo, tem direito a resposta ou retificação”.

[18] MOREIRA, Vital. O direito de resposta na comunicação social. Coimbra: Coimbra Editora, p. 38.  Obra citada por FERREIRA, Aluízio,  p. 199-200.

[19] O Código de Defesa do Consumidor impõe a realização de contrapropaganda no caso de publicidade enganosa ou abusiva em prejuízo ao consumidor (art. 60). A extensão do direito de resposta para a proteção de interesses difusos é proposta por Fábio Konder Comparato em seu artigo A democratização dos meios de comunicação de massa. In A televisão aos 50: criticando a televisão  brasileira no seu cinqüentenário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 199-200.

[20] Para Miguel Reale: “Além disso, entre as múltiplas consequências resultantes do impacto dos meios eletrônicos de comunicação sobre a sociedade, mister é reconhecer que eles determinaram e continuam determinando notáveis mudanças na apreciação geral dos acontecimentos, desde os econômicos aos artísticos, criando uma situação  instável no plano da sensibilidade e da ação”. Cf. Variações sobre o direito-dever de informar. Em O Estado de São Paulo, 20.3.1999, caderno A2, citado por MARTINS, Ives Gandra. Direitos e deveres no mundo da comunicação – da comunicação clássica à eletrônica. Em Carta Mensal nº 541, vol. 46. Rio de Janeiro, RJ, 2000, p. 49-89.

[21] MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, p. 346-379.

[22] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 38-41.

[23] ALEXANDRINO, José de Melo. Obra citada, p. 92-93.

[24] ALEXANDRINO, José. Obra citada,  p. 116.

[25] FERREIRA, Aluízio. Obra citada, p. 68.

[26] Direito de informação e liberdade de expressão. Rio de Janeiro, Renovar,  p. 25, 1999.

[27] PEREIRA, Guilherme. Liberdade e responsabilidade dos meios de comunicação (exame de algumas questões). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

[28] Obra citada, supra, p. 67-8.

[29] Idem.

[30] Ibid., p. 118-121.

[31] SECLAENDER, Airton C. Leite. O direito de ser informado – base do paradigma moderno do direito de informação. In Revista de Direito Público nº 69, 153.

[32] Ibid., p. 13-14.

[33] É o que mostra Rodrigo Bornholdt: “Para o Tribunal Constitucional Alemão não se protegem fatos sabida ou provadamente inverídicos. O mesmo entendimento possui a Suprema Corte norte-americana. Já as opiniões são amplamente protegidas, ainda que sem fundamentação. Elas só deixarão de prevalecer quando colidirem com outros direitos fundamentais e bens jurídicos com status constitucional e, após a adequada ponderação, conceder-se proteção a estes últimos”. In Colisão entre direitos fundamentais: liberdade de expressão versus direito à honra. Trabalho inédito, p. 224.

[34] A liberdade de expressão e a comunicação social. In Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política nº 20 do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, julho-setembro, 1997, p. 48.

[35] Controle da programação de televisão: limites e possibilidades, p. 37, 1999. Dissertação de Mestrado em Direito/UFRS. Não publicada.

[36] Id.

[37] Id.

[38] Ibid.,  p. 167-8.

[39]  BUCCI, Eugênio. Sobre Ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 42, 43 e 47.

[40] Maurício Ribeiro Lopes esclarece que: “Entretanto, a atual dimensão da informação na vida dos cidadãos, com reflexos em seu comportamento, em sua consciência social e política e até em seus hábitos de consumo torna o direito à informação algo pertencente ao público”. Em Revista de Processso n. 92. São Paulo: SP, Instituto Brasileiro de Direito Processual, 1998, p. 269-303.

[41] Sobre o assunto: CARNOTA, Enrique Gómez-Reino y. La liberdad interna de los medios privados de comunicacion social. In Revista Del Centro de Estudios Constitucionales, n. 1º., enero-abril,  Madrid, 1989, p. 21-33.

[42] Ibid., p. 221-228.

[43] Rodrigo Meyer Bornholdt expõe:

 

“Quanto à possibilidade de restrição de direitos no caso de colisões entre direitos fundamentais garantidos sem reserva de lei, deve-se ressaltar a posição de alguns, que defendem não poder o legislador previamente regulamentar um conflito cuja solução, pela vontade constitucional, caberia unicamente ao Judiciário.

Segundo Ulli Rühl, os direitos fundamentais positivados sem reserva de lei necessitam, para sua restrição, de uma fundamentação especial (besonderen Begründung). A metódica estruturante, sem discordar desse posicionamento, analisa-o com cuidado maior. Se a norma constitucional é positivada sem a possibilidade de restrição, serão apenas textos de normas constitucionais que poderão restringir este direito. Tudo o que terá por conseqüência que a lei restritiva apenas balizará uma restrição realizada já ao nível dos textos constantes (e dos âmbitos normativos construídos) da Constituição.

Em outras palavras, a lei restritiva terá um puro efeito declaratório de uma restrição que se opera por força de uma colisão decidida com base em dados constitucionais, e cuja solução não poderá ser conhecida senão a partir da resolução do caso concreto. Assim, por exemplo, enquanto, no direito alemão, um direito “geral” à honra pessoal, legalmente traçado, poderá limitar a liberdade de expressão (dependendo sempre do caso concreto), por haver expressa autorização constitucional para tanto (art. 5o., II), o tipo legal da injúria apenas restringirá o direito à liberdade de expressão artística, garantido sem reserva de lei, quando corresponder a um traçado constitucional do direito à honra. Tratar-se-á, nomeadamente, daquelas situações em que, no caso concreto, o direito à honra surja enquanto manifestação da dignidade humana, ou do direito geral de personalidade, já que é apenas nestas duas situações que, como se verá, o direito à honra é protegido constitucionalmente. Conseqüência disso, na metódica estruturante, será que a lei autorizada constitucionalmente a restringir um determinado direito fundamental, não poderá restringir o âmbito normativo de outro direito, com aquele colidente ou concorrente, caso não haja, quanto a este último, reserva de lei igualmente fixada na Constituição. Em outras palavras, o parâmetro para a restrição de direitos sem cláusula de reserva será, sempre, um outro direito constitucional. In Ibid, p. 250.

[44] Ibid., p. 132.

[45] Sobre a influência da televisão  na capacidade de reflexão das pessoas, conferir: MENDES, Marques. Rádio e Televisão como Serviço Público. In Comunicação e Defesa do Consumidor. Coimbra: Coimbra Editora, 1996,  p. 111-117.

[46] TÁVOLA, Artur da. A liberdade do ver: televisão em leitura crítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 11.

[47] Ibid., p. 58.

[48] Manual de direito constitucional. t. IV, Direitos fundamentais, p. 456-7, citado por FERREIRA, Aluízio. Direito à informação. Direito à comunicação. Direitos fundamentais na Constituição brasileira. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997, p. 205.

[49] Ibid., p. 168.

[50] Ibid., p. 460.

[51] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16ª., São Paulo: Malheiros, p. 249, 1999.

[52] Para a compreensão da problemática conferir: SCORSIM, Ericson Meister. TV Digital e Comunicação Social: aspectos regulatórios: Belo Horizonte: Fórum, 2008.

[53] Uma das diferenças do modelo brasileiro de comunicação social em relação ao português é a outorga do direito de antena apenas aos partidos políticos.

[54] HORTA, Raul Machado. Constituição e Ordem Econômica e Financeira. In Revista brasileira de estudos políticos, p. 7-27.

[55] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. In Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, nº. 19, abril-junho de 1997, p. 7-36.

[56] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 224, 1997.

[57] Ibid., p. 223.

[58] Curso de direito constitucional positivo, p. 767.

[59] Ibid., p. 153.

[60] CHIRILLO, Eduardo J. RODRIGUEZ. Privatización de la empresa pública y post privatización. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1995, p. 83-158.

[61] PASTOR, Javier VICIANO. Livre Competencia e intervención pública en la economia. Valencia:  Tirant lo Blanch, 1995, p. 37-114.

[62] ARINO ORTIZ, Gaspar. Economia y Estado. Madrid:  Marcial Pons, 1993, p. 340.

[63] Ibid., p.  46-60.

[64] COMPARATO, Fábio Konder. A democratização dos meios de comunicação de massa. In A televisão aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, p. 183-201. Para o professor COMPARATO, a empresa capitalista não pode cumprir a tão sonhada função social, eis que a mesma está voltada radicalmente para a obtenção de lucros. Ele diz: “Na verdade, a idéia de as empresas serem obrigadas, de modo geral, a exercer uma função social ad extra no seio da comunidade em que operam, apresenta o vício lógico insanável da contradição. A empresa capitalista – importa reconhecer – não é, em última análise, uma unidade de produção de bens, ou de prestação de serviços, mas sim uma organização produtora de lucros. É esta a chave lógica para a compreensão de sua estrutura e funcionamento”. In Estado, Empresa e Função social. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 732, outubro de 1996, p. 38-54. Essas idéias embasaram a proposta do Partido dos Trabalhadores de democratização dos meios de comunicação social no âmbito da Assembléia Nacional Constituinte.

[65] Ibid.,  p. 43-63.

[66] PAZ, Jose Carlos Laguna de. Regimen juridico de la television privada. Madrid: Marcial Pons, 1994, p. 46-65.

[67] Idem.

[68] Idem.

[69] Idem.

[70] Idem.

[71] Idem.

[72] Ibid., p. 60-1.

[73] Para José Alexandrino: “Num ponto se poderá avançar um pouco: quanto mais a iniciativa económica se aproximar da pessoa individual, mais nítido será o direito subjetivo subsistente, ao passo que, perante a grande empresa de comunicação e o poderio  económico que ela assume, aquela nitidez se diluirá; por outro lado, e em paralelo, o tipo e  natureza  das mensagens determinarão, igualmente, a densidade do direito e a extensão dos condicionamentos ao acesso e ao desenvolvimento das actividades de emissão. Exemplificando: no primeiro caso, a televisão  local (392) ou a pequena estação emissora sem fins lucrativos não devem conhecer limitações especiais, salvo a existência de razões técnicas  impeditivas; no segundo caso, as televisões temáticas, como, por exemplo, as que se ocupem apenas de desporto, cinema ou formação não devem igualmente conhecer, além de condicionamentos de raiz tecnológica, condicionamentos especiais distintos de idênticas actividades (393), mas não já as televisões generalistas, as televisões que emitam informação (genérica ou especializada) (394) ou as televisões que promovam a espectáculo a vida privada das pessoas, onde – para garantia  do sistema de liberdades e do modelo da Constituição económica – se impõe exigências e controlos particulares”.

[74] Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p.  227. A norma que trata da livre iniciativa tem aplicabilidade diversa em relação ao serviço de radiodifusão de sons e de imagens  e no do serviço de televisão a cabo. A intervenção estatal sobre a livre iniciativa é mais acentuada no caso da televisão generalista (serviço de radiodifusão de sons e imagens, que será abordado no capítulo seguinte), que em relação à televisão a cabo, o que gera um regime jurídico diferenciado. Tal questão, por falta de espaço, infelizmente aqui não pode ser abordada.

[75] Para uma análise mais profunda da questão ver: SCORSIM, Ericson Meister. TV Digital e Comunicação, obra citada acima.

[76] MÜELLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 75-7.

[77] BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação/Educação: aproximações. In A televisão aos 50 anos: criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 95-6.

[78]MALISKA, Marcos Augusto. O direito à educação e a Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001, p.156-7.

[79] Idem.

[80] Idem.

[81] O legislador veio a contemplar o “ensino à distância” pela televisão, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dando-lhe tratamento diferenciado pela possibilidade de custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens, concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas e reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais. Tal tratamento diferenciado à “educação à distância” é definido pelo art. 80, §4º , da Lei nº. 9.394/96.

[82] Reiventando as humanidades. In As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 312.

[83] RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. In A economia do ócio (Domenico de Masi, organização e introdução). Rio de Janeiro: Sextante, 2001, p. 71.

[84] ENZENSBERGER, Hans Magnus. Elementos para uma teoria dos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,  1978, p. 75.

[85] Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. 2ª ed., São Paulo: Cortez,  2000, p.13-18.

[86] É relevante traduzir a parte da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, particularmente no campo da mídia, que assim se expressa:

“Art. 17. Os Estados membros reconhecem a importante função desempenhada pela mídia de massa e assegurarão que a criança tenha acesso a informações e materiais de diversas fontes nacionais e internacionais, especialmente aquelas que objetivam a promoção de seu bem-estar social, espiritual e moral, e sua saúde física e mental. Para este fim os Estados membros:

a)       encorajarão a mídia de massa a disseminar informações e materiais que beneficiem social e culturalmente a criança, e de acordo com o espírito do artigo 29;

b)       encorajarão a cooperação internacional para a produção, troca e disseminação de tais informações e materiais de várias fontes culturais, nacionais e internacionais;

c)       encorajarão a produção e disseminação de livros infantis;

d)      encorajarão a mídia de massa a ter especial consideração pelas necessidades lingüísticas da criança que pertença a uma minoria ou seja indígena;

e)       encorajarão o desenvolvimento de orientações apropriadas a fim de proteger a criança de informações e materiais nocivos ao seu bem-estar, tendo em mente as cláusulas dos artigos 13 e 18”.

[87] Sobre o assunto: HAMMABERG, Thomas. A criança e a mídia: relatório  do Comitê da ONU para os Direitos da Criança. In A criança e a violência na mídia. São Paulo: Cortez Editora, p. 35-45. E FEILITZEN, Cecilia Von. Introdução  aos artigos de Pesquisa sobre A Criança e a Violência na Tela. In A criança e a violência na mídia, 1999, p. 49-61.

[88] Ordenação constitucional da cultura, p. 35.

[89]  (art. 215, §1º)

[90]  (art. 216)

[91] Ibid., p. 51-2.

[92] Ibid., p. 82-3.

[93] LEAL, Laurindo Filho. Atrás das câmeras: relações entre cultura, Estado e televisão. São Paulo: Summus Editorial, 1988, p. 81.

[94] ECO, Umberto, Apocalípticos e integrados. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 43-48.

[95] Ordenação constitucional da cultura, p. 78.

[96] CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. 7ª ed., p. 43. Citada por José Afonso da Silva em Ordenação constitucional da cultura, p. 77.

[97] LEAL FILHO, Laurindo. A televisão pública. In A televisão aos 50: criticando a televisão  brasileira no seu cinqüentenário. Eugênio Bucci (org.), São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p.153-165.

[98] KAEMPER, Dirk. Política cultural na televisão  alemã. In Televisão e Cultura no Brasil e na Alemanha (Apresentações no Seminário “Cultura e Política na Televisão do Brasil e da Alemanha”, em Salvador, de 9 a 14 de maio de 1994). São Paulo: Edições GRD. Salvador: ICBA, Instituto Cultural Brasil Alemanha, 1997, p. 20-28.

[99] O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva,  2000, p. 27.

[100] DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. 3ª ed., São Paulo: Editora Perspectiva, 2000,  p. 32-4.

[101] Ibid., p. 144.

[102] Conforme pesquisa do IBGE, realizada no ano de 1999, sobre Informações Básicas Municipais: 93% dos municípios brasileiros não têm sala de cinema; 94% não possuem um shopping center; 85% das cidades não têm museus ou teatros; 35% não contam com ginásio esportivo e 25% não dispõem de bibliotecas públicas (dos municípios que contam com biblioteca 69% dentre eles contam com apenas uma, e, nos municípios com até 20 mil habitantes, 93% não contam com nenhuma biblioteca). Diante desses dados, os autores Christianne Werneck e Hélder Isayama concluem que é flagrante a ausência de espaços públicos destinados ao lazer, distribuídos homogeneamente pelo território nacional. Em verdade, poucas cidades concentram muitos centros públicos de lazer, enquanto que a maioria dos municípios brasileiros conta com pouquíssimos equipamentos urbanos dedicados a essa prática social. Outra conclusão reside na identificação entre os produtos da indústria cultural como sendo a própria cultura. WERNECK, Christianne Luce Gomes e ISAYAMA, Hélder Ferreira. Lazer, Cultura, Indústria Cultural e Consumo. In  Lazer e Mercado. Campinas, SP: Papirus, 2001, p. 46.

[103] LIMA, Venício A de. Mídia: teoria e política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 269.

[104] Citada por LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 264.

[105] A afirmação da autora é feita a partir da análise do pensamento de Adorno e Horkheimer. Vide: A teoria crítica: ontem e hoje, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 72.

Revista de Infromação Legislativa, v.46, nº 182, pág. 17-40, 2009.

 

 

 

Categorias
Artigos

Em defesa da regulação dos serviços de televisão por radiodifusão

  1. Introdução

A disciplina infraconstitucional dos serviços de televisão por radiodifusão é realizada pela Lei 4.117/62.

Com efeito, a Lei  nº 4.117/62, que trata dos serviços de televisão por radiodifusão, ainda em vigor (apesar de substancialmente modificada na parte relativa às telecomunicações pela Lei nº 9.472/97), além de não disciplinar o sistema de radiodifusão público constitucionalmente previsto, mantém o regime de delegação estatal à iniciativa privada, mediante a concessão, permissão e autorização.

No contexto à época da aprovação da referida lei, havia duas referencias no direito comparado. Uma delas era o modelo norte-americano de televisão, baseado na livre iniciativa, na televisão comercial (financiamento mediante publicidade), no regime privado (propriedade privada e concorrência), na noção de public utility, na caracterização do espectro eletromagnético como um bem público, na licença, na televisão pública com caráter complementar à televisão privada, na existência de uma agência reguladora do setor (Federal Communication Comission) etc.

Outra conformação identificava o modelo europeu fundado nas ideias de televisão pública, de monopólio estatal, de noção de serviço público, de regime de direito público, de caracterização de espectro eletromagnético como um bem público, concessão, vedação à livre iniciativa etc.

A decisão legislativa brasileira resultou em um modelo de organização dos serviços de televisão por radiodifusão, combinando os elementos dos dois sistemas normativos referidos: a titularidade estatal exclusiva sobre os serviços de radiodifusão, mas possibilitando-se a gestão estatal e/ou privada, mediante concessão, permissão e autorização. Contudo, não se adotou uma autoridade reguladora independente do governo, muito embora tenha sido previsto o Conselho Nacional de Telecomunicações nos termos da Lei 4.117/62 que durou pouco tempo. Na prática, o presidente da República juntamente com o ministro das Comunicações definiam as questões da disciplina da radiodifusão.

Em outras palavras, um modelo misto de coexistência entre televisões comerciais e estatais. Contudo, sem a constituição de uma verdadeira agência reguladora para o setor[1].

Na década de 1990, no contexto de um processo amplo de reforma do papel do Estado, de abertura dos mercados decorrentes da globalização das economias, houve a mudança do paradigma de organização do setor de telecomunicações. Com a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da Emenda Constitucional nº 08/95, houve permissão para a privatização do setor de telecomunicações e a entrada de grupos estrangeiros, o que ensejou, posteriormente, a nova Lei Geral de Telecomunicações e a agência reguladora para o setor: a Anatel[2].

A referida emenda constitucional operou uma radical mudança quanto à mídia eletrônica (rádio e televisão) à medida que esta foi afastada do setor de telecomunicações. Os serviços de radiodifusão de sons e de sons e imagens ficaram fora do alcance da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/97) e das competências da Agência Nacional de Telecomunicações, excetuados os aspectos técnicos. Entretanto, o setor de televisão por assinatura permaneceu qualificado como serviço de telecomunicações, submetendo-se à referida lei e à Anatel[3]

2.    Conselho de Comunicação Social

Na década de 1980, no contexto de processo de redemocratização do país, com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, surgem movimentos sociais contrários ao clientelismo na outorga das concessões de televisões por radiodifusão. Contudo, a nova Constituição de 1988 foi uma oportunidade para a cristalização dos poderes locais ou regionais, particularmente os “ganhos” do período militar, e a atuação da frente conservadora baseou-se na distribuição de concessões no campo da radiodifusão, para fins de manutenção das benesses obtidas durante o regime militar[4]. Na tentativa de neutralizar o poder Executivo quanto à distribuição de canais de radiodifusão, mediante a adoção de critérios políticos, ficou estabelecida a participação do Congresso Nacional e instituído o Conselho de Comunicação Social como seu órgão auxiliar, de acordo com disposição dos arts. 223 e 224, da CF. Contudo, não lhe foi atribuído nenhum poder regulatório sobre os sistemas de radiodifusão, competindo-lhe , apensa, a elaboração de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações do Congresso Nacional. Além disso, ficou inoperante por mais de uma década, e os seus primeiros conselheiros foram nomeados somente no ano de 2002.

O Conselho de Comunicação Social é disciplinado pela Lei nº 8.389/91 e é composto por 13 membros, entre os quais: um representante das empresas de rádio; um representante das empresas de televisão; um representante de empresas da imprensa escrita; um engenheiro com notórios conhecimentos na área de comunicação social; um representante da categoria profissional de jornalistas; um representante da categoria profissional dos radialistas; um representante da categoria profissional dos artistas; um representante das categorias profissionais de cinema e vídeo; e cinco membros representantes da sociedade civil. Os membros são escolhidos pelo Congresso Nacional, com mandato de dois anos e uma possibilidade de recondução, com a indicação das entidades representativas dos setores mencionados nos incisos I a IX do art. 4º da Lei nº 8.389/91.

Infelizmente, a modelagem do Conselho de Comunicação Social é eminentemente de caráter corporativo, sem ampla representatividade da sociedade civil e a adoção de mecanismos de participação dos usuários dos serviços de televisão em seu interior.

A configuração atual do Conselho de Comunicação Social não permite a sua atuação como órgão regulador dos serviços de televisão por radiodifusão. Daí porque somente por intermédio da alteração do texto constitucional e legislativo é que seria possível atribuir competência regulatória sobre o setor de radiodifusão. De todo modo, entendo que a competência regulatória deve ser atribuída à Anatel, transformando-a em agência reguladora das comunicações, como será visto.

3. EUA: a Federal Communications Comission

A intervenção pública sobre o setor de radiodifusão centra-se basicamente no trabalho da Federal Commission Communication (FCC) que é uma agência encarregada das políticas reguladoras relacionadas aos serviços de telecomunicações (inclusive serviços de radiodifusão) oferecidos pelos mais variados meios: televisão, rádio, comunicações privadas, telefones celulares, satélites terrestres e orbitais, cabo, etc. O modelo de televisão exige o equilíbrio entre a necessidade de intervenção pública e a liberdade de mercado de televisão, protegida pela primeira emenda da Constituição.

Trata-se de um paradigma à margem da ideia de serviço público que serve à estruturação da televisão nos países europeus, e também para o Brasil. Nos EUA a radiodifusão é qualificada como uma public utility[5] , uma instituição que não se identifica com a noção europeia de serviço público, pois são diferentes os pressupostos sociais, políticos e econômicos[6]. O significado de public utility na língua portuguesa aproxima-se da ideia de um serviço privado, mas de interesse público. Antigamente, era possível ver com maior clareza a diferença entre as fronteiras da public utility  e da noção de serviço público; atualmente, elas não são tão nítidas[7] Apesar da complexidade na identificação das notas diferenciadoras, as categorias possuem identidade própria[8].

O serviço de televisão por radiodifusão é uma public utility totalmente diferente das demais public utilities, já que está diretamente atrelado à concepção democrática e à liberdade de expressão. Em função disso, a broadcasting regulation implica sérias questões, particularmente quanto ao acesso ao m eio de comunicação, regulação do conteúdo audiovisual e à produção e à veiculação de notícias de interesse público que possibilitem o debate público[9].

A FCC é uma agência reguladora constituída por cinco membros, indicados pelo presidente e sujeitos à confirmação do Senado. Um dos seus integrantes é escolhido pelo presidente para ocupar a função de chairman. Não mais que três podem pertencer ao mesmo partido político e uma vez confirmados no cargo não podem ser destituídos durante o mandato de cinco anos. Ela é integrada por vários órgãos com diversas funções – e um doos principais é o Media Bureau, com competência –, entre outras, para outorgar certas licenças e proceder à renovação das mesmas[10].

Umas das características essências da FCC é a independência, eis que existem limites quanto à destituição pelo presidente do pessoal encarregado da direção da agência. Essa independência consiste na atribuição de autonomia na forma da lei quanto ao exercício de competências em relação ao governo e aos partidos políticos. O objetivo originário era evitar que ela fosse controlada por um único partido político, de modo que ela obtivesse vantagens materiais ou eleitorais, daí a sua estruturação para garantir um controle recíproco entre os partidos políticos[11].

O paradoxo de uma agência reguladora consiste no fato de que o objetivo originário é o de garantir a tomada de decisões de forma autônoma diante de questões técnicas e complexas, contudo, ela não é propriamente integrada em seu corpo diretivo por experts,  mas por membros indicados pelos partidos políticos e referendados pelo presidente e pelo Senado.

Para o cumprimento de seus objetivos institucionais, atribui-se à FCC uma série de competências.

A FCC dispõe de diversas competências. No que tange à regulação do setor de comunicações. Segundo a referida lei, quando se trata de aplicação dos serviços e dos termos das licenças “a comissão deve garantir a outorga de uma licença a qualquer solicitante desde que haja conveniência, interesse e necessidade pública, nos termos da lei”[12].  A agência reguladora norte-americana FCC detém a competência para regular em bloco o setor de comunicações, não havendo a fragmentação regulatória entre o setor de telecomunicações e o setor de radiodifusão.

Ela ainda dispõe de competência normativa que lhe permite baixar normas de regulação do setor de radiodifusão e dispor sobre controvérsias.

4.    França: Conselho Superior do Audiovisual francês

(Conseil Supérieur de l’Audiovisuel)

Na França, a ideia de garantir a independência do setor de comunicação audiovisual em face do poder político, mediante a instituição de uma autoridade reguladora independente, foi concretizada, originariamente, no ano de 1982, com a criação da haute autorité encarregada da proteção ao principio da liberdade de comunicação social, incluindo a regulação tanto da comunicação audiovisual quanto das telecomunicações[13]. Com a lei de 1986, foi criada a Comission Nationale de la Communication et des Libertés ( CNCL), como sucessora da haute autorité, e, diferentemente desta, incompetente para tratar do setor de telecomunicações, mas apenas com a atribuição de tratar do setor audiovisual, especificamente a competência para outorgar autorizações[14].

Em 1989, é instituído o Conselho Superior do Audiovisual (CSA) em substituição ao CNCL, uma autoridade administrativa independente encarregada da regulação do setor audiovisual na França, composta por nove membros nomeados por decreto do presidente da República (três membros designados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembleia Nacional e pelo presidente do Senado), cujo mandato é de seis anos irrevogáveis e não renováveis[15].

Na França, atualmente, também há uma autoridade administrativa reguladora do setor de telecomunicações e dos serviços postais (originariamente, l’autorité de régulation des télecommunications (ART) que, mediante a lei de 1996, foi transformada na autorité de régulation des communications electroniques et des postes – Arcep) e outra autoridade reguladora do espectro radioelétrico (Agence Nationale des Fréquences – ANFR, criada pela lei de telecomunicações de 26 de julho de 1996).

O Conselho Superior do Audiovisual é uma autoridade reguladora independente que tem por função a garantia do exercício da liberdade de comunicação, o respeito pelos editores de princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, ordem pública e expressão pluralista das correntes de opinião, honestidade da informação), a proteção da infância e da adolescência, a comunicação publicitária, telecompras, patrocínio, regime de difusão de obras cinematográficas e audiovisuais, defesa da língua francesa, a utilização das frequências radioelétricas[16].

O CSA tem, entre outras, as seguintes competências: nomeação de cinco personalidades qualificadas no conselho de administração da France Télévisions; promover nomeações em outros estabelecimentos públicos do setor audiovisual; elaboração de regras sobre sua organização administrativa, das condições técnicas de utilização das frequências; exercício do direito de réplica; emissões de expressão direta; código deontológico aplicável a seus membros; monitoramento do conteúdo da prestação do serviço de televisão; e também tem um  papel consultivo em  relação ao Parlamento e ao governo, na proposição de leis ou regulamentos em matéria de radiodifusão; e a aplicação de diversas sanções aos operadores, distribuidores e editores dos serviços de rádio, de televisão, etc.

A autoridade reguladora também tem por competência a atribuição de autorização para o uso de bandas de frequências  para os serviços de comunicação audiovisual difundidos por via hertziana terrestre (rádios locais, televisões nacionais e locais).

É importante destacar que, com o novo marco jurídico, houve a unificação do regime de distribuição de serviços (redes de cabo, satélites e demais operadores de TV por ADSL) com o regime do serviço de rádio e televisão. Nesse contexto, a lei confere competência ao CSA para regular os diferentes tipos de serviços de comunicação audiovisual. A sua autuação incide sobre os difusores de rádio e de televisão do setor privado e do público, como também os distribuidores dos serviços de rádio e de televisão. Sua competência limita-se, no entanto, aos “verdadeiros” serviços de rádio e de televisão, independentemente do meio técnico adotado para a difusão do sinal. É possível que o CSA autorize a utilização de uma “frequência audiovisual” para a prestação de serviços de comunicação eletrônica (principalmente telefonia), depois de aviso conforme a Arcep (autoridade de telecomunicações e serviços postais).

Todos os distribuidores de serviços de comunicação que fazem uso de uma rede de comunicação eletrônica, que não utiliza as frequências radioelétricas, estão submetidos a um regime de autorização para a instalação de redes de cabo em comunidades, que foi substituído por um regime de declaração prévia junto à Arcep.

5.    Atribuição de poder regulatório sobre o setor de radiodifusão à Anatel

Um dos principais problemas do Brasil em termos de democratização da televisão é a deficiente regulação estatal, eis que o interesse setorial, em articulação com o poder político, sobrepuja o interesse da sociedade brasileira. Conforme lições do professor Fábio Konder Comparato: “a regulação do sistema de comunicação como um todo, incluindo nesta era de multimídia o conjunto dos canais de telecomunicação por via telefônica, tornou-se, no presente, uma matéria constitucional por sua natureza” [17].

Em função disso, torna-se necessária a respectiva regulação, por intermédio de uma agência autônoma dos serviços de televisão por radiodifusão, em relação ao poder político (especialmente, o poder do governo – presidente e Ministério das Comunicações) e ao poder econômico (empresas de mídia nacionais e internacionais e agências de publicidade) [18].

Além disso, a regulação estatal pressupõe a existência de uma atividade econômica.

Com efeito, só faz sentido falar em regulação quando se trata de uma atividade de mercado. Essa é a principal razão para a instituição de uma agência reguladora. Por isso a televisão comercial deve ser entendida como uma atividade econômica em sentido estrito e não mais como serviço público, logo a figura da concessão deve ser abandonada e aplicada a autorização administrativa.

Aqui, adota-se uma postura crítica diante da separação promovida de modo circunstancial pela Emenda Constitucional nº 08/95, entre os setores de telecomunicação e radiodifusão, defendendo-se a modificação do ordenamento jurídico, para atribuir competência regulatória à Anatel sobre os serviços de televisão por radiodifusão. Assim, permite-se a relativização da separação entre os dois universos, promovendo alguns passos em direção à aproximação recíproca.

A medida proposta justifica-se pelas seguintes razões: o processo de convergência de tecnologias e de prestação de serviços em matéria de comunicações eletrônicas requer a unidade regulatória; evita-se a confusão da atribuição de competência entre distintas entidades, o que compromete a segurança jurídica; aproveita-se a experiência da Anatel em termos de regulação setorial sobre os serviços de telecomunicações; facilita-se a adoção de uma política nacional de comunicações diante da internacionalização da mídia; a implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, em razão de sua própria dinâmica requer um órgão especializado no tratamento das questões técnicas que lhe são subjacentes; e os demais serviços de televisão por assinatura já se encontram sob a jurisdição da referida agência.

Nesse contexto, algumas alterações no direito positivo precisam ser feitas tanto na Constituição Federal quanto na legislação infraconstitucional.

Defende-se aqui a proposta de modificação do ordenamento jurídico brasileiro, na forma de emenda constitucional, alterando-se o art. 223, § 1º, § 2º, § 4º, e o art. 49, XII, da CF, para atribuir as competências então conferidas ao poder Executivo e ao poder Legislativo (ato de outorga, ato de renovação e ato de não renovação) e ao poder Judiciário (ato de cancelamento do ato de outorga), à Anatel, dotada de plena autonomia em face do poder político e do poder econômico, coma participação da cidadania brasileira nos procedimentos de outorga, renovação, entre outros.  Com efeito, sua autonomia é “caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira”, nos termos do art. 8º, § 2º, da Lei nº 9.472/97[19]. A atribuição de competência regulatória à referida agência em relação ao setor de radiodifusão só tem sentido se ela dispuser do poder de outorga, normatização e fiscalização em relação às emissoras de televisão por radiodifusão.

Além disso, deve-se alterar a Lei Geral de Telecomunicações, a fim de incluir tal competência à Anatel, transformando-a em uma Agência Nacional de Comunicações. Ora, se há um ministério das Comunicações, nada mais razoável do que a existência de uma agência especializada em matéria de comunicações, independentemente da tecnologia adotada. Ao ministério competirá a elaboração da política pública em matéria de comunicações, enquanto à agência caberá a definição e a execução da política regulatória. Nesse sentido, o modelo proposto aproxima-se da experiência da Federal Communications Comission dos EUA, que tem por objeto justamente todas as modalidades de serviços de comunicações, independentemente da plataforma tecnológica adotada.

No atual momento histórico, entende-se como inconveniente a criação de mais uma agência especializada unicamente no setor audiovisual.

De fato, o conteúdo audiovisual é objeto de tratamento especial pela Constituição, razão pela qual impões um estatuto específico. Contudo, isso não exige necessariamente uma agência especializada somente no setor da comunicação audiovisual.

Por outro lado, entende-se como inconveniente a atribuição de competência regulatória dos serviços de televisão à Agência Nacional de Cinema, algo que se pretendia em sua modelagem originária, Isso porque, em razão do processo de convergência de tecnologias, entende-se que o modelo da Anatel já atende, de certa forma, às necessidades de regulação setorial, bastando apenas sua reformulação.

Portanto, é perfeitamente possível atribuição à Anatel da regulação em termos de conteúdo audiovisual. É que a separação entre a regulação da infraestrutura e do conteúdo audiovisual acaba enfraquecendo a própria proteção a este último. Em regra, quem detém os meios de comunicação é que determina quais conteúdos serão veiculados pelas redes de difusão. No Brasil, a disciplina das redes há de ser feita em harmonia com o tratamento dos conteúdos audiovisuais, sob pena de ineficiência. Um dos mecanismos para neutralizar o poder dos proprietários e/ou controladores das redes é a promoção da regulação, em conjunto, em favor da produção do conteúdo audiovisual. Com isso, minimiza-se o risco do controlador da rede impor condições excessivas para transporte de conteúdo audiovisual de outros concorrentes[20].

Sintetizando, ao invés de separação entre os setores de telecomunicações e radiodifusão, deve ocorrer uma aproximação entre os mesmos, justamente em razão do processo de convergência tecnológica, ainda mais acentuando pela implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital.

6.    Conclusões

É fundamental para o Estado democrático de direito a criação de um órgão regulador dos serviços de comunicação social efetuado pelas emissoras de televisão por radiodifusão. É inadmissível, em um país que pretende ser uma democracia material, a ausência de regulação sobre a mídia eletrônica. Pensar de modo contrário é submeter o interesse da sociedade brasileira ao mero interesse econômico do setor de radiodifusão. Em verdade, a regulação estatal, a par de servir ao interesse público, serve ao próprio mercado e à liberdade de radiodifusão. Se, de um lado, é imprescindível evitar os abusos praticados pela liberdade de radiodifusão, também é necessário restringir os abusos estatais contra ela cometidos. Daí o importante papel da função regulatória desempenhada por uma agência reguladora autônoma, para evitar o abuso do poder econômico e do poder político, em garantia do pluralismo econômico e político e do equilíbrio entre os sistemas de radiodifusão. Assim, uma das propostas aqui sustentadas é atribuir a uma agência especializada competência para regular o setor de radiodifusão.

Em uma visão mais aberta, a liberdade econômica até pode ser considerada como um fim em si, servindo aos interesses capitalistas dos proprietários e/ou controladores da empresa. Nesse contexto, a regulação estatal serve apenas para tratar das falhas do mercado, especialmente quando surgem monopólios e/ou oligopólios. Contudo, tal entendimento sequer é majoritário, mesmo em um dos países de acentuada tradição liberal como é o caso dos EUA.

No contexto de um Estado democrático de direito, a regulação estatal tem que garantir o justo equilíbrio entre o poder econômico das organizações da mídia e o poder político, sob pena da liberdade dos meios de comunicação social tornar-se um fator de domínio da sociedade e de estrangulamento do sistema político. Aqui, a liberdade de comunicação deve não só favorecer os proprietários dos meios de comunicação, como também o público destinatário dos respectivos serviços, na qualidade de consumidores e de cidadãos.

Enfim, são inúmeras as vantagens com a existência de um órgão regulador: ganham a sociedade, o mercado e o próprio Estado. A sua inexist~encia é que traz diversas complicações: insegurança jurídica, falta de adequada tutela aos consumidores e aos cidadãos, excessiva politização do sistema de radiodifusão, ausência de garantia de acesso aos canais de televisão pelos grupos sociais etc. Nesse contexto, o Conselho de Comunicação Social poderia atuar como um órgão regulador da comunicação social, desde que houvesse modificação no sistema jurídico. Ou, como defendo, a Anatel poderia ser transformada em uma agência das comunicações eletrônicas em geral, independentemente da plataforma tecnológica adotada. Agora, independentemente de quem possua a competência regulatória (se o Conselho de Comunicação Social ou a Anatel), o fundamental é a autonomia do órdão regulador diante do poder político (e, particularmente, do governo) e do poder econômico (a fim de evitar a sua captura pelo mercado).

Referências

ALMEIDA, André Mendes. Mídia eletrônica: seu controle nos EUA e no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1993.p.53-54.

ARAGÃO, Alexandre. Regulamentação efetiva dos serviços de utilidade pública. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.p.59.

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007.p.152-166.

BALLE, Francis. Médias & sociétés. 12.ed. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence: EJA, 2005.p.353.

BARTON, T.Carter et al. The first amendment and the fourth estate. The Law of Mass Media. 9.ed. New York: Foundation Press, 2005.p.682.

CAPPARELLI, Sérgio; SANTOS, Suzy. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho conceito. In: BRITTOS, Valério Cruz; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia.2.ed. São Paulo: Paulus, 2005.p.88.

CARBONELL, Elopisa; MUGA, José Luis. Agencias y procedimento administrativo en Estados Unidos de América. Madri: Marcial Pons: Jurídicas y Sociales, 1996.p.47-52.

CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de direito administrativo. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964.v.2, p.59-60.

COMPARATO, Fábio Konder. A democratização dos meios de comunicação de massa. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. P.163.

DEBASCH, Charles. Droit de le l’audiovisuel. 4.ed. Paris: Dalloz, 1995. P. 211.

KAHN, Alfred E. The economics of regulation. Principles and institutions. Introduction. New York: MITT Press; Massachusetts: Institute of Technology, 1988. Itens 3/I a 7/I.

MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

PEREIRA, Moacir. A democratização da comunicação e o direito à informação na Constituinte. São Paulo: Global, 1987.

RAMOS, Murilo César. As novas comunicações brasileiras. In: DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octavio et al. Desafios da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2000. P. 331-333.

SHAPIRO, Martin. Agenzie indipendenti: Stati Uniti ed Unione Europea. Cedam, v.1, p. 667-697, 1996.

VESPIGNANI, Luca. Telediffusione tra regime del servizio e servizio della libertà. Milano: Giuffrè, 1998. P. 37.

VIANNA, Gaspar. Direito de telecomunicações. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. P. 144-148.

ZUCKMAN, Harvey et al. Modern communications law. St. Paul: West Group, 1999. p. 157.


[1] A bem da verdade, a Lei nº 4.117/62 previu a figura do Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) na qualidade de órgão encarregado da execução da política pública em matéria de telecomunicações, cujos membros devem ser cidadãos brasileiros de reputação ilibada, e notórios conhecimentos de assuntos ligados aos diversos ramos de telecomunicações (art.28). Com o Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que trata da reforma administrativa, é criado o Ministério das Comunicações, e alterados e reduzidos os poderes do Contel, transformado em um órgão de consulta. Para aprofundar o tema, consultar Vianna (1993).

[2] Para uma análise dos interesses comerciais envolvidos quando da aprovação da Lei Geral das Telecomunicações e da privatização das comunicações, conferir: Mídia: teoria e política, p.115-136. Conforme Venício Lima: “Essa nova política favorece a concentração  da propriedade porque não impede a propriedade cruzada dos grupos empresariais de telecomunicações, comunicação de massa e informática, e estimula a participação crescente dos global players, diretamente ou associados aos grandes grupos nacionais, na medida em que elimina todas as barreiras para a entrada do capital estrangeiro”.

[3] Segundo Murilo César Ramos, o interesse quanto ao destacamento dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e de imagens era tanto do Poder Executivo em rapidamente acelerar o processo de liberalização do setor de telecomunicações quanto dos radiodifusores em ficar fora do âmbito de qualquer órgão regulatório que não fosse o Ministério das Comunicações, submetido ao velho Código Brasileiro de Telecomunicações.

[4] Para uma análise mais aprofundada a respeito das propostas de democratização da comunicação, no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, consultar Pereira (1987).

[5] A noção de “public utilities” tem como pressuposto a categoria “ business with a public interest”,  originando-se nos Estados Unidos, a fim de justificar a intervenção estatal, por meio do legislador, sobre a fixação de preços de serviços ou mercadorias em detrimento do proprietário. Para uma visão histórica da categoria de public utilility como “business clothed with a public interest” nos Estados Unidos, à luz da jurisprudência da Suprema Corte, conferir Kahn (1988).

[6] Themístocles Cavalcanti (1964), ao tratar da diferenciação entre os serviços públicos e os serviços de utilidade pública, explica o seguinte: “Essa distinção é mais comum nos Estados Unidos, onde as public utilities obedecem a um regime peculiar. Naquele país, a intervenção do Estado não é grande, embora se tenha verificado, nos últimos anos, uma intromissão maior do Estado em certos serviços. Constituem-se, entretanto, grande parte dos serviços públicos, por iniciativa particular sob a denominação de public utilities, cuja definição, como vimos, depende de condições variáveis. Daí a afirmação de Bielsa que public itility é aquele serviço considerado tal pelos tribunais”.

[7] Gaspar Arino Ortiz promove a relativização da distinção entre os serviços públicos do direito administrativo da tradição franco-germânica e as public utilities anglo-saxônicas, citando duas decisões em que foi afirmada a titularidade estatal sobre as public utilities, manifestando-se no seguinte sentindo: “mesmo em um modelo teórico (a doutrina das public utilities) que se diz mais afinado com as teses privatizadoras e liberais das atividades econômicas, a tese da titularidade estatal dessas atividades essenciais chegou a ser igualmente formulada”.

[8] Em postura de contestação, Alexandre Aragão (2002) entende que, embora tenha ocorrido em um ou outro acórdão proferido nos EUA uma manifestação episódica da titularidade estatal, “as diferenças básicas entre a sistemática anglo-saxônica e a franco-germânica são mantidas”.

[9] O direito norte-americano apresenta diversos níveis de aplicação da primeira emenda (liberdade de expressão) em relação às múltiplas tecnologias de comunicação. Como explicam Harvey Zuckmann e outros, a questão fundamental não é saber se existem diferenças técnicas entre os meios de comunicação, mas se tais diferenças justificam distinções constitucionais entre os diversos.

[10] Além do Media Bureau, a FCC é constituída pelo International Bureau, Wireless Telecommunication Bureau e Wireline Competition Bureau.

[11] Cf. Shapiro (1996) e Carbonell (1996). Apesar desse fato, as agências independentes não atuam à margem da política pública em termos de comunicações traçada pelo chefe do poder Executivo e pelo Congresso. Em verdade, não há uma independência em relação à política, à medida que seus membros são nomeados pelo presidente, como também os respectivos funcionários do gabinete, Além disso, a independência não afasta o controle efetuado pelo Congresso a respeito de suas atividades. Nesse caso, o poder Legislativo tem o dever de identificar os erros e as responsabilidades em relação à gestão da agência federal, efetuando o controle politico e o controle econômico-financeiro.

[12] Cf. Communications Act of 1934, alterado pelo Telecommunications Act de 1996.

[13] Ver Debasch (1995).

[14] Ver Vespignani (1998).

[15] A independência dos membros do CSA é garantida, além do mandato, pelo regime de incompatibilidade com mandato eletivo, emprego público e qualquer outra atividade profissional. Eles não podem receber honorários 9salvo aqueles anteriores ao exercício do mandato no CSA), nem deter interesses em uma empresa de audiovisual, cinema, imprensa, publicidade ou telecomunicações. Até cinco anos após o exercício do mandato, os ex-membros do CSA não podem receber participações por trabalho, conselho ou capitais nas empresas audiovisuais ou na imprensa escrita (Debasch, 1995).

[16] Balle (2005). Com a criação do Conselho Superior do Audiovisual francês há certo retrocesso em relação à fórmula originária da Comissão Nacional de Comunicação e Liberdades, haja vista a diminuição de seus poderes e a respectiva transferência ao governo. Não lhe foi atribuído, portanto, competência regulamentar tendo em vista restrição imposta pela jurisprudência do Conselho de Estado (Vespignani, 1998). Conferir, também, Bellescize e Franceschini. A competência do CSA quanto à disciplina da utilização do espectro radioelétrico, para fins de prestação de serviços de comunicação audiovisual, não se confunde com a competência da Agência Nacional de Frequências (Agence Nationale des Fréquences – ANFR0. Essa última agência reguladora é a responsável pela coordenação do espectro radioelétrico entre os diversos entes, aos quais tenham sido atribuídas frequências para a emissão, como é o caso do CSA. Entre outras funções, compete à ANFR: garantir a gestão eficaz do espectro radioelétrico e elaborar propostas de melhorias de sua utilização, coordenar o posicionamento francês nas negociações internacionais relativas ao uso do espaço radioelétrico, coordenar a implantação no território nacional de estações radioelétricas, organizar e coordenar o controle de utilização de frequências, manter um fundo de gestão do espaço radioelétrico para facilitar a evolução no uso das frequências (Bernal).

[17] Ver Comparato (2001).

[18] Nesse sentido, é importante fazer uma justa homenagem ao professor Fábio Konder Comparato, que há tempos sustenta a necessidade de um órgão administrativo autônomo para cuidar da regulação e fiscalização do setor de comunicação social.

[19] Conforme dispõe a Lei Geral de Telecomunicações em seu art. 23: “Os conselheiros serão brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de sua especialidade, devendo ser escolhidos pelo presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição Federal”, sendo que “o mandato dos membros do Conselho Diretor será de cinco anos” (art. 24).

[20] Um dos fundamentos para a restrição do poder dos proprietários dos meios de comunicação consiste justamente na função social da propriedade. A esse respeito, consultar: Maluf (2005); Bacellar Filho (2007).

Revista de Direito Administrativo, v. 249, Belo Horizonte: Editora FGV e Fórum, pág. 49-61, 2008.

 

 

 

Categorias
Artigos

Princípio Constitucional da Complementaridade dos Sistemas de Radiodifusão Privado,Público e Estatal

Ericson Meister Scorsim

Abordo hoje o princípio constitucional da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal, baseado no art. 223 da CF.

Trata-se de uma norma, infelizmente, ainda não integralmente desenvolvida e aplicada em nosso País.

Entendo que ela é uma manifestação do princípio do pluralismo no âmbito do sistema de comunicação social por radiodifusão, exigindo em razão da diversidade de operadores e a multiplicidade de conteúdos audiovisuais. Vale dizer, é uma garantia em favor da estruturação policêntrica do sistema de comunicação social.

Além disso, penso que a idéia de complementaridade é incompatível com a hierarquia entre os diferentes sistemas de radiodifusão. Há uma igualdade estatutária entre os mesmos que deve ser respeitada, quer pelo Estado, quer pelo mercado.

Sem dúvida alguma, o referido princípio constitucional autoriza a organização e a disciplina do sistema de radiodifusão estatal, tal como pretendido pelo governo federal com a criação da Empresa Brasil de Comunicação. Entretanto, talvez não seja a melhor forma jurídica tratar do tema por medida provisória, mas sim por intermédio de projeto de lei.

Importante destacar que, apesar de denominada como televisão “pública”, a EBC é, em verdade, uma espécie de televisão estatal, eis que criada, gerida e controlada pelo Estado. Evidentemente que ela há de respeitar o pluralismo político, evitando tornar-se um instrumento de propaganda do governo ou de alguns de seus membros ou partidos políticos que estão no poder.

Por outro lado, há o dever de o legislador organizar e disciplinar o sistema de radiodifusão público. Este é de titularidade da sociedade civil, razão pela as emissoras públicas devem ser criadas, geridas e controladas pelos grupos sociais de cidadãos. É de fundamental importância a garantia de acesso da cidadania aos meios de radiodifusão em prol da expressão das diversas correntes de opinião e de idéias. Nesse sentido, propõe-se a criação de televisões comunitárias no âmbito da radiodifusão em favor da democratização da mídia em nosso País.

A centralidade da televisão comercial por radiodifusão no cenário audiovisual brasileiro é um fato. Graças à sua competência ou ao nosso comodismo ela ocupa – e muito bem – o seu espaço.
Contudo, compete ao Congresso Nacional, em obediência ao princípio constitucional da complementaridade, criar alternativas para os telespectadores brasileiros, garatindo-se a pluralidade de operadores estatais e públicos, bem como a diversidade dos conteúdos audiovisuais.

Blog TV Digital – www.tvdigital.adv.br – Dez/2007.

 

 

 

 

Categorias
Artigos

Serviços de televisão e espectro eletromagnético

Ericson Meister Scorsim

Os serviços de televisão por radiodifusão constituem atividades que devem ser compartilhadas entre o Estado, a sociedade e o mercado, em razão do princípio constitucional da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal.

Um dos seus elementos básicos é o fato de que sua prestação depende da utilização do espectro eletromagnético um bem naturalmente escasso altamente disputado no mercado, classificado como bem público nos termos da legislação brasileira.

Com efeito, o espectro eletromagnético compreende inúmeras faixas de freqüências com múltiplos usos, o que permite a prestação de diversos serviços de comunicações, entre os quais o serviço de radiodifusão. As faixas de freqüências do espectro eletromagnético, para além de servir à prestação dos serviços de radiodifusão sonora e de radiodifusão de sons e imagens, servem aos seguintes serviços: móvel aeronáutico, móvel marítimo, radionavegação, por satélite, serviço móvel pessoal, serviço de TV por assinatura, serviço móvel especializado, serviço de comunicação multimídia, socorro e chamada, pesquisa espacial, radioamador, radioastronomia, entre outros.

A título ilustrativo, mesmo em um dos países mais liberais do mundo como é o caso dos EUA, note-se que houve a rejeição ao modelo calcado na idéia de sistema de mercado em relação à alocação do espectro eletromagnético e no direito de propriedade sobre os recursos do respectivo espectro. Conseqüentemente, as licenças de radiodifusão não conferem a propriedade sobre as freqüências, mas tão-somente o privilégio de uso sobre elas em período delimitado no tempo.

A Suprema Corte no caso Red Lion Broadcasting versus FCC confirmou que a limitação natural do espaço eletromagnético atuava como fundamento para a regulação dos serviços de radiodifusão. Assim, a liberdade de expressão, protegida pela Primeira Emenda da Constituição norte-americana, não se aplicava ao caso, eis que a limitação do espectro eletromagnético, apesar de todos os avanços tecnológicos, permite que o governo imponha restrições aos licenciados em favor de outras pessoas, cujos pontos de vista merecem expressão nessa forma de mídia, havendo o direito supremo dos ouvintes e dos telespectadores e não o direito dos radiodifusores.

Nesse sentido, a Primeira Emenda protege aquele que é licenciado. Contudo, este não tem o direito de ser o único a manter a licença ou monopolizar a radiofreqüência com a exclusão dos cidadãos. Não há impedimento constitucional a que o Governo exija do licenciado a divisão de sua freqüência com outros e agir como fiduciário com a obrigação de apresentar pontos de vista e vozes representativos da comunidade, caso contrário, esses seriam excluídos do acesso à radiodifusão.

Em razão da escassez do espectro de radiofreqüências, está o Governo autorizado a impor restrições aos licenciados em favor de outras pessoas cujos pontos de vista devem ser expressos nesse único meio. O propósito da Primeira Emenda é o de preservar o vigoroso mercado de idéias no qual a verdade prevalecerá ao final, ao invés de simplesmente aprovar o monopólio desse mercado, seja da parte do Governo ou de um licenciado privado.

Por outro lado, com a tecnologia digital, abre-se a possibilidade de otimização do uso das freqüências e a abertura de novos canais de televisão, inclusive torna-se possível que o “canal” tradicional de televisão transmita, concomitantemente diversas programações. Em razão disso, é fundamental que o legislador (e não somente o Poder Executivo) discipline a questão de modo a garantir a democratização do acesso ao espectro eletromagnético, instituindo um novo marco regulatório que garanta prioridade de acesso às freqüências em relação as televisões públicas e estatais.

Jus Navigandi – www.jusnavigandi.com.br, 28 set.2007.

Categorias
Artigos

Um novo modelo para a televisão comercial por radiodifusão

Ericson Meister Scorsim

O modelo tradicional do serviço de televisão por radiodifusão está fundado na matriz clássica de serviço público, disciplinado na forma da desatualizada Lei nº 4.117/62.

Recentemente, contudo, em defesa de tese de doutorado junto à Faculdade de Direito da USP, intitulado Estatuto dos Serviços de Televisão por Radiodifusão, orientado pela Professora Dra. Odete Medauar, defendemos a proposta de enquadramento dos serviços de televisão no sistema de radiodifusão privado como atividade econômica em sentido estrito com o objetivo de promover a adequação entre o direito e a realidade de mercado.

Há décadas tem ocorrido a generalização da aplicação da noção de serviço público em relação aos sistemas de radiodifusão. Contudo, a ordem infraconstitucional carece de ferramentas regulatórias adequadas para disciplinar os serviços de televisão em favor dos consumidores e da cidadania.

O instituto da concessão de serviço público empregado no serviço de televisão por radiodifusão tem servido muito mais aos interesses dos concessionários e ao seu propósito lucrativo do que ao interesse público. Vale dizer, a concessão e o respectivo regime de serviço público contribuiu muito mais à formação de reservas de mercado e à concentração de poder econômico do que aos interesses dos usuários dos respectivos serviços.

Ainda, a concessão tem favorecido aos interesses políticos, havendo uma politização excessiva no processo de outorga e renovação de emissoras de televisão. Nesse aspecto, o direito não tem sido eficaz o suficiente para impedir o cometimento de abusos do poder político, a exemplo da propriedade de inúmeras emissoras por agentes políticos. Daí porque se propõe a disciplina dos serviços de televisão por radiodifusão sob o ângulo do mercado. A adoção do regime privado pelo ordenamento jurídico é mais adequada à sua respectiva dinâmica, particularmente em um setor sob constante evolução tecnológica. A relativização da utilização da noção de serviço público e a flexibilização do regime jurídico justificam-se também em virtude das transformações decorrentes da utilização da técnica digital no setor de radiodifusão.

O Estado, seja por ação, seja por omissão, não pode impedir o desenvolvimento tecnológico, ao contrário, ele deve ser o principal ator do cenário de transformações capitaneadas pelo mercado. Nesse sentido, ele não pode legitimar um modelo de estruturação de reserva de mercado, em favor dos interesses dos radiodifusores, em detrimento dos interesses da sociedade. Pelo contrário, sua missão é a de promover um regime de competição voltado à eficiência e ao pluralismo no campo da radiodifusão.

E mais, a proposta serve à democratização do cenário audiovisual, assegurando-se a existência de estruturas de comunicação e a diversificação do conteúdo na programação de televisão, mediante o desenvolvimento da liberdade de radiodifusão pertencente aos agentes econômicos.

O serviço de televisão configura uma atividade de distribuição de conteúdo audiovisual. É evidente que sua prestação requer a disponibilidade desse mesmo conteúdo audiovisual. Portanto, a utilização do regime privado é um fator de adequação entre as ofertas de produção e de distribuição de conteúdo audiovisual.

O novo enfoque proposto permitirá a gestão mais eficiente das freqüências do espectro eletromagnético, com a racionalização de seu uso entre os agentes privados, públicos e estatais. Nesse sentido, faz-se necessária a repartição das freqüências em diversas categorias de utilização, a saber: usos comerciais e não-comerciais, assegurando-se, porém, o acesso prioritário aos sistemas de radiodifusão estatal e público.

Igualmente, em um ambiente de convergência tecnológica, com a possibilidade de prestação dos serviços de televisão por diversas plataformas, o novo modelo, ora proposto, impõe-se diante da tendência de entrelaçamento entre o mercado de serviços televisão por radiodifusão e o de serviços de telecomunicações. Aqui, adota-se uma posição crítica diante da separação entre os dois setores, conduzida pela Emenda Constitucional nº 08/95, razão pela qual se defende uma aproximação entre os mesmos e a necessária modificação do ordenamento jurídico, quer por Emenda Constitucional, quer por lei ordinária.

O reconhecimento pelo ordenamento jurídico da lógica de mercado possibilitará a melhor repartição dos benefícios decorrentes da técnica digital entre as empresas, a sociedade, os consumidores, os cidadãos etc., desde que, é claro, seja atribuída a competência regulatória sobre os serviços de televisão por radiodifusão a uma agência reguladora, no caso, a ANATEL, com a função de assegurar o equilíbrio interno no mercado nacional e o equilíbrio externo em face dos demais sistemas de radiodifusão.

Atualmente, já prevalece a lógica de mercado no sistema de radiodifusão privado, porém a doutrina e a jurisprudência tratam, ainda, como serviço público privativo do Estado. Um conceito só se justifica se ele refletir a realidade dos fatos e do direito. Mostra-se inadequado insistir na manutenção da utilização de uma noção clássica, sendo que as realidades constitucional, social e tecnológica apontam para a necessária atualização de seu sentido. Assim, o conceito do passado deve ser transformado e adaptado conforme as circunstâncias do presente, com vistas à regulação setorial que produzirá efeitos para o futuro. De um lado, possibilita-se a sua permanência (no âmbito dos sistemas de radiodifusão estatal e público), de outro lado, viabiliza-se a sua mudança (com o seu afastamento do sistema de radiodifusão privado).

Jus Navigandi – www.jusnavigandi.com.br, 14 set.2007.