A noção de espaço sonoro das cidades é incompreendida. Há crise de percepção sobre a realidade sonora urbana. Por isto, este bem ambiental de uso comum é objeto de análise. As cidades têm uma paisagem sonora. O espaço sonoro é a parte da atmosfera por aonde se propagam das ondas sonoras. O nosso espaço vital pessoal tem em seu entorno o espaço acústico.[1] O espaço vital está associado ao espaço psicológico.[2] E, também, o espaço auditivo, o que contribui a percepção ambiental acústica. Também, o espaço vital é diretamente associado ao espaço de segurança, diria a segurança ambiental, área de entorno aonde a pessoa vive e/ou está. Por isto, a percepção do entorno ambiental é fundamental para compreensão dos ruídos.[3]
Aqui, precisamos compreender a teoria dos campos de energia. Temos a energia vital. Mas, esta energia vital pode ser comprometida pela energia tóxica dos ruídos. Os ruídos causam o estresse físico e mental do organismo humano, por isto afeta o equilíbrio do corpo e da mente. Afinal, a audição é o sentido de percepção dos ruídos. A qualidade de vida humana depende da qualidade de vida do espaço sonoro das cidades. Por isto, os ruídos impactam seriamente o bem estar urbano, a saúde pública e causam a degradação ambiental. A ordem natural é de equilíbrio, de quietude. A desordem é causada pelos ruídos que perturbam o equilíbrio do ecossistema A experiência do habitar está ligada à experiência do sentir, sentir o lugar aonde se vive. A audição está ligada ao instinto de sobrevivência, pois ao detectar ruídos o organismo se prepara para lutar ou fugir diante de uma ameaça e/ou perigo. Ocorre que o espaço sonoro está contaminado pelos ruídos ambientais. Estes ruídos são causados por máquinas, veículos e ferramentas.
A sujidade dos ruídos ambientais é um fator de degradação. Estes ruídos ambientais causam a incomodidade para as pessoas e a sujidade das cidades. Para, além disto, os ruídos causam a perturbação do organismo humano, afetando o sistema cognitivo, fisiológico, endócrino, nervoso, do sono, digestivo. Com os ruídos, há respostas do organismo emocionais, fisiológicas e cognitivas. Ruídos causam o estresse do organismo humano. Portanto, o ambiente residencial é impactado pelos ruídos ambientais. Ora, a lei define o que é ruído: “som capaz de causar perturbação ao sossego público ou efeitos psicológicos ou fisiológicos negativos em seres humanos e animais”.[4] Sobre o aspecto psicológico, é interessante que Jung mencionou o tema dos ruídos, em carta destinada ao advogado e professor Karl Oftinger, em 1957. Carl Jung destaca que os ruídos criam uma dependência infantil do mundo exterior. É “um sintoma degenerativo da civilização urbana”, nas palavras de Jung.
Ruídos impactam o sistema nervoso e criam uma espécie de dependência tóxica. Segundo ainda Jung, paradoxalmente, embora o ruído seja maléfico à saúde, o ruído “abafa o alarme instintivo interior”. Em outras palavras, o ruído é um mecanismo de compensação para medos interiores. Pessoas que têm medo do silêncio gostam do barulho. Os ruídos criam uma dependência tal como o álcool para os alcóolatras. Os ruídos representam um mecanismo de fuga da realidade, da percepção do real.[5] O paradoxo dos ruídos, por quem gosta dele, é serem desejados, porém fazer mal à saúde. Para Jung: “O barulho moderno é parte integrante da ‘cultura moderna, que está orientada, sobretudo para fora e para a amplitude e aborrece toda interiorização. É um mal que tem raízes profundas. As prescrições legais existentes já poderiam melhorar muita coisa, mas não são postas em prática. Por que não? É uma questão de moral. Mas ela esta abalada em seus fundamentos, e isto se deve novamente à desorientação espiritual em geral. Uma verdadeira melhora só pode vir através de uma mudança profunda de consciência. Acho que todas as outras medidas serão paliativos duvidosos, uma vez que não chegam àquela profundida onde o mal tem suas raízes e a partir de onde se renova constantemente”.[6] E continua Jung afirmando que processo de destruição é um objetivo inconsciente atual, com destruição da capacidade de concentração, por máquinas e aparelhos. Há ameaças por superficialidade, falta de atenção e falta de consciência. O esgotamento nervoso causado pelos ruídos leva à perda da energia vital. Outros autores importantes analisaram o espaço acústico, como Gernot Bohme[7], Mcluhan, Ervin Straus.
O ambiente pessoal, associado diretamente ao espaço vital, é afetado pelos ruídos ambientais. O ambiente de trabalho é atingido pelos ruídos urbanos. A autonomia privada do morador e proprietário é gravemente atingida pelos ruídos, seja da vizinhança, seja do trânsito. Ruídos são uma espécie de invasão de domicílio. Um desrespeito ao direito ao uso da propriedade. Em nenhum momento, o morador e proprietário faz o consentimento da invasão dos ruídos em sua propriedade. Também, precisamos distinguir os ambientes positivos para a neurodiversidade cognitiva e auditiva daqueles ambientes despreparados para lidar com este neurodiversidade. Note-se que os ruídos são ondas sonoras que se propagam pelo ar, são como um vírus que contamina a atmosfera. Ruídos aumentam a pressão sonora da atmosfera. São uma espécie de energia negativa jogada pelos ares. Ora, o cérebro e o corpo são atingidos por estas vibrações e ondas sonoras negativas, por isto os ruídos representam uma violência psicológica, fisiológica e acústica. O espaço urbano é degradado pelos ruídos.
Além disto os ruídos causam a feiura da cidade, um atentado à ética ambiental e à estética ambiental da paisagem sonora. Precisamos superar a subcultura insana e de mal estar dos ruídos pela cultura saudável da quietude residencial urbana. Máquinas, equipamentos, veículos e ferramentas poluidores acústicos são espécies invasoras do habitat humano, são seres estranhos ao ambiente natural e ao ecossistema humana. Precisamos distinguir os ambientes saudáveis sonoramente dos ambientes não saudáveis. Necessitamos distinguir os ambientes sustentáveis sonoramente daqueles ambientes insustentáveis ambientalmente. Também, distinguir entre os ambientes culturais com a cultura sonora sustentáveis daqueles ambientes com subcultura tóxica dos ruídos. Outro ponto de distinção é o ambiente com regras de governança (gestão ambiental sonora), transparência e compliance sobre a sustentabilidade ambiental acústica, com o incentivo ao comportamento social e sustentável e a repressão aos comportamentos antissociais e insustentáveis. Também, para incentivar práticas de conduta ambiental responsável e gestão ambiental responsável, para a autocontenção dos ruídos. Com isto, poderemos pensar em justiça ambiental acústica para combater a impunidade dos poluidores acústicos, os quais criam um status quo abusivo e tóxico nas cidades. Esta iniquidade ambiental, causada pelo poluidor acústico, deve ser combatida pelos cidadãos. Por isto, precisamos do novo design urbano para conter os ruídos ambientais. Um novo urbanismo saudável e sustentável. Um urbanismo que supere a mecanoesfera (ambiente de máquinas, veículos e ferramentas) ineficiente e respeite a bioesfera e psicoesfera, a esfera da vida. Um urbanismo comprometido com a biologia, a psicologia e fisiologia humanas que seja radical contra as máquinas poluidoras acústicas mecanicamente ineficientes. Necessitamos de políticas para inovação industrial e a aplicação das inovações em empresas, condomínios, veículos, etc.
Ora, se o espaço sonoro é um bem ambiental de uso comum, seu uso deve ser conforme as regras ambientais, para evitar a poluição sonora e a degradação do meio ambiente. Abusos na ocupação do espaço sonoro devem ser prevenidos e reprimidos. Por isto, o uso abusivo de máquinas, veículos e ferramentas poluidoras acústicas devem ser o alvo do poder de polícia ambiental. Há uma cultura de conformidade e uniformidade quanto à não percepção do impacto dos ruídos sobre a saúde pública, bem estar público e descanso público. Neste aspecto, é necessário de pensar na sustentabilidade ambiental acústica e as relações de vizinhança. Aqui, deve ser aplicado os princípios ambientais de prevenção do dano ambiental acústica, precaução do dano ambiental, proibição do retrocesso ambiental e princípio do poluidor pagador. O poluidor acústico deve ser alvo de repressão, com a aplicação das sanções cabíveis. As relações de vizinhança devem respeitar o direito à quietude residencial e proteção contra a poluição sonora. Cidadão e a cidadania estão associados, pelos menos etimologicamente, à civilidade. Precisamos superar a arbitrariedade na gestão de condomínios insensíveis à questão da sustentabilidade ambiental acústica e desrespeitos à dignidade humana, para além de mal educados e promovedores da subcultura tóxica da poluição ambiental acústica. Por isto, a necessidade de campanhas de conscientização, sensibilização e mobilização dos cidadãos a respeito das medidas para mitigar, reduzir e isolar os ruídos. Os ruídos se espalham em todas as direções.
Em um bairro residencial, há o impacto de ruídos de obras de reparos dentro de condomínios, obras de construção civil, ruídos do trânsito, equipamentos de jardinagem, entre outros. Em um edifício, os edifícios vizinhos podem fazer obras ruidosas. Por outro lado, precisamos distinguir o ambiente natural, o ambiente humano e o ambiente artificial de máquinas, veículos e ferramentas. No ambiente natural predomina a cultura da quietude. Na natureza há a harmonia dos sons. Em ambiente humano, por si só, em equipamentos mecânicos, há a quietude, excetuadas as hipóteses de manifestações mais barulhentas. O problema é o ambiente artificial da proliferação de máquinas, veículos e ferramentas barulhentas. O grande desafio é a crise da percepção, isto é, as pessoas não perceber o impacto dos ruídos em relação à saúde pública, bem estar público e descanso público. Um exemplo: ambiente residencial, a pessoa pode ser atingida pelos ruídos do próprio condomínio (serviços de jardinagem, obras de reparos, motores de portões, barulho de fechaduras eletrônicas). Além disto, há os ruídos dos prédios vizinhos (obras, serviços de jardinagem, etc.). E mais, os ruídos do trânsito de ônibus, automóveis, motocicletas e caminhões. A pessoa, em sua propriedade, é atingida, portanto, pela poluição sonora. Estes ruídos afetam o direito de usar, usufruir e dispor da propriedade, para trabalhar, cuidar da saúde, descansar entre outras funções. O morador e proprietário é, portanto, lesado em seus direitos fundamentais. Por isto, são necessárias medidas urgentes para a proteção dos direitos fundamentais diante dos ruídos. As inovações tecnológicas podem contribuir e significativamente para o controle dos ruídos ambientais. 5G, inteligência artificial, machine learning, big data, 3D, radares acústicos, entres outras. Ora, os poluidores é que devem ser enquadrados na lei.
As máquinas é que devem ser enquadradas em padrões de eficiência acústica, para evitar a propagação de danos ambientais acústicos. Vivemos, atualmente, um padrão de ineficiência de máquinas, automóveis e ferramentas, os quais causam a poluição acústica. Ruídos são como lixo, jogado nas ruas e dentro das residências. No entanto, não há o mesmo tratamento dado aos ruídos do que aquele conferido ao lixo. Por isto, precisamos de ações ambientais para serviços de higienização pública do espaço sonora das cidades, para limpeza os ruídos ambientais. O governo local tem a responsabilidade ambiental de promover serviços de limpeza pública dos ruídos ambientais das cidades. Precisamos maximizar a proteção dos direitos fundamentais para a contenção dos ruídos ambientais. Necessitamos maximizar a eficiência de máquinas, veículos e ferramentas, para eliminar, mitigar e/ou isolar os ruídos. A ineficiência acústica de máquinas, veículos, ferramentas e serviços não pode jamais ser tolerada, precisamos superar este estado de conformidade e uniformidade quanto à subcultura tóxica dos ruídos. O direito ao ambiente limpo, saudável e sustentável, conforme consagra a Resolução n. 76/2022 da ONU requer a proteção contra a poluição sonora.
A ecologia urbana pede melhores práticas ambientais em defesa da paisagem acústica das cidades. O zoneamento ambiental sonoro das cidades precisa, urgentemente, ser revisado de modo a se maximizar a proteção dos direitos fundamentais. A qualidade do espaço público sonoro das cidades passa por degradação ambiental acelerada, com a multiplicação de eventos ruidosos, fontes ruidosas, máquinas ruidosas, etc. Precisamos de inovação ambiental e indústria, em prol da maximização dos direitos ambientais, com a maximização da eficiência acústica de máquinas, equipamentos, ferramentas e veículos. Necessitamos pensar uma política ambiental de baixa emissão de ruídos (low emission áreas) ou ruído zero (zero emission áreas) para superar o status quo tóxico e abusivo de subdesenvolvimento tecnológico, cultural e mental relacionados aos ruídos urbanos causados por equipamentos, máquinas, ferramentais poluidores acústicos.
Ericson Scorsim. Advogado e Consultor no Direito do Estado. Doutor em Direito pela USP. Autor do livro Movimento Antirruídos para cidades inteligentes, sustentáveis e saudáveis, Amazon, 2022
Crédito de Imagem: Google Imagens.
[1] Sobre a noção de espaço vital, ver: Lewin, Kurt. Principles of topological psychology. Martino Publishing, Mansfield Centre, 2015. Ver, também, Lewin, Kurt. The conceptual representation and the measurement of psychological forces. Durham, Duke University Press, 1938. O autor esclarece os campos de força psicológica em determinada situação.
[2] Lewin, Kurt. Principles of topological psychology. Mcgraw-Hill Book Company, 1936.
[3] Sobre o tema da percepção humana, ver: Kohler, Wolfang. Gestalt Psychology. The defiitnive statement of the gestalt theory. New York: LiveRight, 1975.
[4] Ver: Lei 10625/2002 que dispões sobre ruídos urbanos, proteção ao bem estar e sossego público
[5] Jung, Carl Gustav. Cartas de C.G. Jung, volume III, 1956-1961, editado por Aniela Jaffé em colaboração com Gerhard Adler, Vozes, 2003, p. 106-108.
[6] Obra citada, p. 108
[7] Bohme, Gernot. Atmospheric Architectures. The Aesthetics of felt spaces. London et alii. Bloomsbury, 2013. Bohme, Gernot. Acustic atmospheres. A contribution to the study of ecological aesthetics. E Boissiere, Anne. L’espace acoustique, ou le sentir lui-même. À partir d’Erwin Straus. Fantasia, vol. 5 (2017), p. 8-18. Ver, também, : Blau, Julia J.C e Wagman, Jeffrey. Introduction to ecological psychology. A lawful approach to perceiving, acting and cogninz. New York and London: Routledge, 2023.