Ericson Meister Scorsim
A mídia tem apresentado diversas notícias a respeito das relações entre a Igreja Universal e a Rede Record. Destaque foi dado à denúncia criminal apresentado pelo Ministério Público de São Paulo contra o bispo Edir Macedo e outras pessoas.
O presente texto tem o propósito de apresentar o quadro regulatório referente ao acesso à atividade de televisão por grupos religiosos e seus respectivos limites. Tal tema implica em inúmeras reflexões de extrema relevância para a sociedade.
A televisão tornou-se um instrumento valioso para a difusão da fé pelas igrejas. Será que as instituições religiosas podem acessar canais de televisão? Entendo que a resposta é positiva, pois há a garantia constitucional neste sentido. A Constituição de 1988 determina que é vedado ao Estado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19). Este preceito não tem o efeito de vedar a exploração pelos grupos religiosos da atividade de televisão por radiodifusão. A Constituição adota a forma de Estado laico, para garantir a democracia, isto é, para possibilitar o governo de todos e para todos. Proíbe-se o governo de atuar em favor de determinada agremiação de natureza religiosa. Contudo, repita-se, isto não significa a negação do acesso das igrejas na atividade de televisão.
A norma deve ser interpretada no sentido da imposição da neutralidade do Estado em face das correntes religiosas. Ou seja, deve ser mantido o saudável distanciamento para a democracia entre o poder político e poder religioso.
O Estado laico, ao contrário de um Estado teocrático, não pode adotar nenhuma religião, mas tem a prerrogativa de, em regime de colaboração, desenvolver com as igrejas atividades de interesse público. O Estado laico afirmou-se em resposta aos abusos cometidos pela intromissão das forças religiosas na política dos países. Trata-se de uma forma de proteção contra a intolerância e a violência decorrente das diferentes manifestações em nome de Deus.
A Carta Fundamental tanto respeita a liberdade religiosa quanto a liberdade de comunicação social. É garantido o “livre exercício dos cultos”, bem como “na forma da lei, a proteção dos seus locais de culto e as suas liturgias” (art. 5º, VI). Portanto, está amparada a transmissão ao vivo do culto, da pregação ou da missa quanto qualquer outra manifestação religiosa, ainda que gravada. Atualmente, não é concebível pensar no exercício da liberdade de culto sem a disponibilidade de sua veiculação pela televisão.
Por outro lado, pode-se argumentar que o regime de serviço público impede o acesso dos entes religiosos à atividade de televisão. Ora, a técnica de qualificação da radiodifusão como uma modalidade de serviço público serve como ferramenta para a ampliação e redistribuição das oportunidades comunicativas e de fortalecimento do pluralismo de expressão.
No livro de minha autoria TV Digital e Comunicação Social (Fórum, 2008), resultado de tese de doutorado na USP, proponho a releitura da concepção de serviço público de radiodifusão. Em verdade, apresento uma visão crítica da generalização do conceito de serviço público para todas as espécies de radiodifusão. Na visão clássica, o serviço público de televisão por radiodifusão, cujas origens são anteriores à Constituição de 1988, é compreendido como uma atividade de titularidade exclusiva da União. Trata-se de uma interpretação estatista da radiodifusão. Sustento, em uma perspectiva contemporânea à luz do contexto constitucional, a revisão desta visão singular e de reserva estatal exclusiva. É essencial pensar e efetivar o modelo plural de televisão promulgado pela Constituição. Por isso, entendo que a radiodifusão deve ser compartilhada entre sociedade, mercado e estado.
Impõe-se um novo paradigma que atenda ao regime das liberdades públicas e de participação plena na radiodifusão dos diversos grupos sociais. O objetivo principal é efetivar o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal (art. 223) no regime dos direitos fundamentais. Assim, faz-se necessária a estruturação do setor público não estatal de radiodifusão, integrado pelas televisões públicas que sejam independentes do poder estatal e do poder econômico. Neste contexto, as igrejas devem estar enquadradas no setor público não estatal da radiodifusão. Não podem lucrar com a atividade de radiodifusão. Elas, a princípio, podem manter televisões educativas, mas jamais televisões comerciais.
No âmbito infraconstitucional, existem algumas regras que necessitam ser revistas e adaptadas à normatividade constitucional. Os serviços de radiodifusão são disciplinados pela Lei n. 4.117, do ano de 1962, que está desatualizada e em descompasso com a Constituição, não atendendo às exigências de pluralidade institucional na organização do setor de radiodifusão. Por sua vez, o Decreto-lei n. 236/1967, ao modificar a referida lei, estabelece quais as pessoas que podem explorar o serviço de radiodifusão: União, Estados, Municípios, Universidades, Fundações e sociedades nacionais (art. 4º).
Será que a lei impede que as igrejas sejam proprietárias e (ou) concessionárias de emissoras de televisão? Para mim, a resposta é negativa. O diploma legal há de sofrer uma interpretação conforme a Constituição, sob pena de ser declarado inconstitucional. A lei não estabelece um rol exaustivo das entidades capazes de executar os serviços de radiodifusão. Trata-se de uma enumeração meramente exemplificativa, que não exclui esta possibilidade para outras entidades quanto à prestação dos serviços em análise.
O legislador não pode impedir o exercício do direito constitucional de acesso à televisão. A liberdade de comunicação social aponta para a inconstitucionalidade da vedação absoluta do acesso aos serviços de radiodifusão. O que é admissível é a imposição de condições para o exercício da liberdade religiosa mediante a atividade televisiva. A outorga da concessão às igrejas não é, por si só, um problema institucional. Aliás, há o dever do poder público garantir o ingresso na atividade de televisão para as organizações religiosas. Em outros países, por exemplo, nos EUA, Portugal, Espanha entre outros, é assegurado o acesso das confissões religiosas à televisão. A igreja é uma instituição dedicada ao exercício do culto e à propagação da fé. Trata-se de uma associação privada sem fins lucrativos. De certo modo, elas prestam um serviço de utilidade pública.
É importante, no entanto, definir-se no âmbito legislativo quais os critérios que identifiquem quais as associações religiosas que merecem receber isenções, imunidade e benefícios (fiscais, trabalhistas e patrimoniais). É fundamental a adoção de parâmetros que possibilitem o reconhecimento dos direitos das igrejas legítimas, ou seja, aquelas respeitáveis e tradicionais, diferenciando de associações criadas oportunamente para fraudar a lei. Deve-se punir as entidades que servem como mero instrumento para o cometimento de ilícitos e burla à legislação. Os fiéis fazem doações na expectativa de que o dinheiro seja aplicado no custeio da instituição e em obras de assistência social, por razões de solidariedade, caridade etc. Alguns, a bem da verdade, esperam algo em troca de sua fé.
A questão problemática é o registro das emissoras de televisão, ligadas às igrejas, em nome de pessoas físicas, sejam dirigentes, parentes e fiéis. Se a associação religiosa é a titular da emissora de televisão, então o registro oficial deve ser feito em seu nome. Quanto a este aspecto, destaque-se que a Constituição originariamente não admitia a propriedade de emissoras por pessoas jurídicas, permitia somente que pessoas físicas fossem as titulares. Porém, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 36, de 28 de maio de 2008, que conferiu nova redação ao art. 222 da Constituição, abriu-se a possibilidade de as pessoas jurídicas serem proprietárias de empresas de radiodifusão. A meu ver, a lei não proíbe que as igrejas acessem a atividade de televisão. É proibido, isto sim, que as organizações religiosas sejam proprietárias de emissoras de televisão. Reprise-se que não é admissível que elas possuam emissoras comerciais, isto é, com finalidades lucrativas. A igreja não é um negócio, nem um instrumento para o enriquecimento privado. Também, não pode servir como plataforma eleitoral para candidatos a cargos públicos. Se uma determinada organização com fins religiosos mantiver uma televisão comercial haverá desvio de finalidade.
Outro sério problema consiste no desvio dos recursos dos fiéis para o enriquecimento privado dos gestores e controladores da igreja. Se configurada a coação psicológica para forçar a arrecadação de recursos há séria ilegalidade. Uma situação legítima é a expressão e difusão da fé, outra totalmente diferente é a exploração da fé do público. Os administradores que eventualmente pratiquem abusos na gestão da instituição devem ser punidos. Ora, se a TV pertence à igreja, então, obviamente, a programação deve ser compatível com a natureza religiosa. Ou seja, deve estar voltada ao ensino da religião, da cultura, à informação e ao culto. O valor central a ser defendido é o princípio da dignidade humana. Ademais, as televisões religiosas não escapam da vinculação aos princípios constitucionais catalogados no art. 221 da Constituição.
Por outro lado, dentre as modalidades de acesso à atividade de televisão pelos grupos religiosos, há a compra de espaço na programação das emissoras comerciais. Será lícita a aquisição de tempo de televisão para a exibição de mensagens religiosas? A emissora comercial tem a liberdade de programação, escolhendo os formatos dos programas, horários de transmissão e publicidade. Se ela decidir por ceder onerosamente espaço para a veiculação de programas religiosos, a princípio, não há, em tese, nenhum ilícito. Ilegalidade haveria se houvesse cessão total do tempo pela emissora comercial para a igreja. Isto desde que a cessão de tempo da programação seja parcial.
Outra questão intrigante consiste na recusa do acesso das igrejas à programação por uma emissora. A princípio, uma empresa de radiodifusão tem a prerrogativa de rejeitar a transmissão de um programa religioso se o mesmo for contrário à sua linha editorial. Existe uma outra questão a ser enfrentada. É que a televisão aberta utiliza-se da radiodifusão. Esta requer o uso das freqüências do espaço eletromagnético. As frequências constituem um bem público e escasso. Por que ao invés de se conceder um canal de televisão para cada igreja não se impõe um canal único a ser compartilhado entre todas? Com a tecnologia digital é possível combinar as diversas programações das diferentes organizações religiosas em um único espaço. Todas as religiões têm, a princípio, o direito constitucional de acesso à televisão. Assim, deve ser garantido o acesso aos católicos, protestantes, evangélicos, judeus, budistas, islâmicos, espíritas, etc. Outros grupos sociais têm igual direito, tais como: partidos políticos, sindicatos, empresas de comunicação, associação de cidadãos etc. O Estado deve garantir a igualdade de oportunidades de acesso à televisão para todos os grupos sociais, sejam religiosos, sejam não religiosos. Vale dizer, o Estado não pode promover o silêncio de determinados grupos que não dispõem de recursos suficientes para acessar os sistemas de radiodifusão. Sua função é a de garantir e de redistribuir as oportunidades comunicativas.
Aqui fica registrada a omissão do Congresso Nacional e do Conselho de Comunicação Social em cumprir com a sua função de regular os serviços de televisão. A radiodifusão vive um caos normativo. Há uma infinidade de leis, decretos, resoluções e portarias contrários à Constituição e que dificultam a vida de todos no que tange à sua respectiva operacionalização prática. Se de um lado, há o dever do poder público impor limites para o acesso à televisão pelas igrejas, por outro lado, ele tem que respeitar a liberdade de radiodifusão.
O Brasil vive uma mistura perigosa entre Estado e religião. Há uma confusão entre poder político, poder midiático e grupos religiosos, o que não é saudável para democracia. A concentração de poderes é repelida pelo Estado de Direito. A defesa da livre formação da opinião pública e da vontade política é uma das condições para o adequado funcionamento das instituições democráticas. O legislador, ao revisar a legislação, deve buscar o ponto de equilíbrio entre a proteção do acesso de todas as religiões à televisão com a imposição de limites. Repito que o problema não é o exercício da liberdade religiosa pela televisão, mas sim os abusos cometidos em seu nome e o desrespeito aos princípios constitucionais da produção e programação (art. 221). A associação religiosa tem o direito à difusão de suas mensagens religiosas. Todavia, a situação torna-se complicada quando estas entidades têm a pretensão de influenciar o funcionamento do sistema político.
A Conferência Nacional de Comunicação, a ser realizada no final deste ano, promete ser o canal eficaz para a formatação do novo modelo plural de televisão, comprometido com a realização prática dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição. Espera-se a edição de uma nova lei que, além de abordar da organização do setor de radiodifusão em face das novas tecnologias, discipline os critérios para o exercício da liberdade de acesso à televisão pelas igrejas. O legislador deve encontrar a justa medida de proporção na utilização do tempo de televisão pelas referidas entidades, segundo critérios de razoabilidade e representatividade. A finalidade principal a ser alcançada consiste no equilíbrio e na harmonização dos opostos: a preservação do Estado laico e o respeito ao exercício da liberdade religiosa pela televisão, nos termos de uma nova legislação, uma vez que nas palavras de Georges Ripert: “quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito”.
Jus Navigandi – www.jusnavigandi.com.br, 05 set. 2009.