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Em defesa da regulação dos serviços de televisão por radiodifusão

20/09/2012
  1. Introdução

A disciplina infraconstitucional dos serviços de televisão por radiodifusão é realizada pela Lei 4.117/62.

Com efeito, a Lei  nº 4.117/62, que trata dos serviços de televisão por radiodifusão, ainda em vigor (apesar de substancialmente modificada na parte relativa às telecomunicações pela Lei nº 9.472/97), além de não disciplinar o sistema de radiodifusão público constitucionalmente previsto, mantém o regime de delegação estatal à iniciativa privada, mediante a concessão, permissão e autorização.

No contexto à época da aprovação da referida lei, havia duas referencias no direito comparado. Uma delas era o modelo norte-americano de televisão, baseado na livre iniciativa, na televisão comercial (financiamento mediante publicidade), no regime privado (propriedade privada e concorrência), na noção de public utility, na caracterização do espectro eletromagnético como um bem público, na licença, na televisão pública com caráter complementar à televisão privada, na existência de uma agência reguladora do setor (Federal Communication Comission) etc.

Outra conformação identificava o modelo europeu fundado nas ideias de televisão pública, de monopólio estatal, de noção de serviço público, de regime de direito público, de caracterização de espectro eletromagnético como um bem público, concessão, vedação à livre iniciativa etc.

A decisão legislativa brasileira resultou em um modelo de organização dos serviços de televisão por radiodifusão, combinando os elementos dos dois sistemas normativos referidos: a titularidade estatal exclusiva sobre os serviços de radiodifusão, mas possibilitando-se a gestão estatal e/ou privada, mediante concessão, permissão e autorização. Contudo, não se adotou uma autoridade reguladora independente do governo, muito embora tenha sido previsto o Conselho Nacional de Telecomunicações nos termos da Lei 4.117/62 que durou pouco tempo. Na prática, o presidente da República juntamente com o ministro das Comunicações definiam as questões da disciplina da radiodifusão.

Em outras palavras, um modelo misto de coexistência entre televisões comerciais e estatais. Contudo, sem a constituição de uma verdadeira agência reguladora para o setor[1].

Na década de 1990, no contexto de um processo amplo de reforma do papel do Estado, de abertura dos mercados decorrentes da globalização das economias, houve a mudança do paradigma de organização do setor de telecomunicações. Com a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da Emenda Constitucional nº 08/95, houve permissão para a privatização do setor de telecomunicações e a entrada de grupos estrangeiros, o que ensejou, posteriormente, a nova Lei Geral de Telecomunicações e a agência reguladora para o setor: a Anatel[2].

A referida emenda constitucional operou uma radical mudança quanto à mídia eletrônica (rádio e televisão) à medida que esta foi afastada do setor de telecomunicações. Os serviços de radiodifusão de sons e de sons e imagens ficaram fora do alcance da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/97) e das competências da Agência Nacional de Telecomunicações, excetuados os aspectos técnicos. Entretanto, o setor de televisão por assinatura permaneceu qualificado como serviço de telecomunicações, submetendo-se à referida lei e à Anatel[3]

2.    Conselho de Comunicação Social

Na década de 1980, no contexto de processo de redemocratização do país, com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, surgem movimentos sociais contrários ao clientelismo na outorga das concessões de televisões por radiodifusão. Contudo, a nova Constituição de 1988 foi uma oportunidade para a cristalização dos poderes locais ou regionais, particularmente os “ganhos” do período militar, e a atuação da frente conservadora baseou-se na distribuição de concessões no campo da radiodifusão, para fins de manutenção das benesses obtidas durante o regime militar[4]. Na tentativa de neutralizar o poder Executivo quanto à distribuição de canais de radiodifusão, mediante a adoção de critérios políticos, ficou estabelecida a participação do Congresso Nacional e instituído o Conselho de Comunicação Social como seu órgão auxiliar, de acordo com disposição dos arts. 223 e 224, da CF. Contudo, não lhe foi atribuído nenhum poder regulatório sobre os sistemas de radiodifusão, competindo-lhe , apensa, a elaboração de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações do Congresso Nacional. Além disso, ficou inoperante por mais de uma década, e os seus primeiros conselheiros foram nomeados somente no ano de 2002.

O Conselho de Comunicação Social é disciplinado pela Lei nº 8.389/91 e é composto por 13 membros, entre os quais: um representante das empresas de rádio; um representante das empresas de televisão; um representante de empresas da imprensa escrita; um engenheiro com notórios conhecimentos na área de comunicação social; um representante da categoria profissional de jornalistas; um representante da categoria profissional dos radialistas; um representante da categoria profissional dos artistas; um representante das categorias profissionais de cinema e vídeo; e cinco membros representantes da sociedade civil. Os membros são escolhidos pelo Congresso Nacional, com mandato de dois anos e uma possibilidade de recondução, com a indicação das entidades representativas dos setores mencionados nos incisos I a IX do art. 4º da Lei nº 8.389/91.

Infelizmente, a modelagem do Conselho de Comunicação Social é eminentemente de caráter corporativo, sem ampla representatividade da sociedade civil e a adoção de mecanismos de participação dos usuários dos serviços de televisão em seu interior.

A configuração atual do Conselho de Comunicação Social não permite a sua atuação como órgão regulador dos serviços de televisão por radiodifusão. Daí porque somente por intermédio da alteração do texto constitucional e legislativo é que seria possível atribuir competência regulatória sobre o setor de radiodifusão. De todo modo, entendo que a competência regulatória deve ser atribuída à Anatel, transformando-a em agência reguladora das comunicações, como será visto.

3. EUA: a Federal Communications Comission

A intervenção pública sobre o setor de radiodifusão centra-se basicamente no trabalho da Federal Commission Communication (FCC) que é uma agência encarregada das políticas reguladoras relacionadas aos serviços de telecomunicações (inclusive serviços de radiodifusão) oferecidos pelos mais variados meios: televisão, rádio, comunicações privadas, telefones celulares, satélites terrestres e orbitais, cabo, etc. O modelo de televisão exige o equilíbrio entre a necessidade de intervenção pública e a liberdade de mercado de televisão, protegida pela primeira emenda da Constituição.

Trata-se de um paradigma à margem da ideia de serviço público que serve à estruturação da televisão nos países europeus, e também para o Brasil. Nos EUA a radiodifusão é qualificada como uma public utility[5] , uma instituição que não se identifica com a noção europeia de serviço público, pois são diferentes os pressupostos sociais, políticos e econômicos[6]. O significado de public utility na língua portuguesa aproxima-se da ideia de um serviço privado, mas de interesse público. Antigamente, era possível ver com maior clareza a diferença entre as fronteiras da public utility  e da noção de serviço público; atualmente, elas não são tão nítidas[7] Apesar da complexidade na identificação das notas diferenciadoras, as categorias possuem identidade própria[8].

O serviço de televisão por radiodifusão é uma public utility totalmente diferente das demais public utilities, já que está diretamente atrelado à concepção democrática e à liberdade de expressão. Em função disso, a broadcasting regulation implica sérias questões, particularmente quanto ao acesso ao m eio de comunicação, regulação do conteúdo audiovisual e à produção e à veiculação de notícias de interesse público que possibilitem o debate público[9].

A FCC é uma agência reguladora constituída por cinco membros, indicados pelo presidente e sujeitos à confirmação do Senado. Um dos seus integrantes é escolhido pelo presidente para ocupar a função de chairman. Não mais que três podem pertencer ao mesmo partido político e uma vez confirmados no cargo não podem ser destituídos durante o mandato de cinco anos. Ela é integrada por vários órgãos com diversas funções – e um doos principais é o Media Bureau, com competência –, entre outras, para outorgar certas licenças e proceder à renovação das mesmas[10].

Umas das características essências da FCC é a independência, eis que existem limites quanto à destituição pelo presidente do pessoal encarregado da direção da agência. Essa independência consiste na atribuição de autonomia na forma da lei quanto ao exercício de competências em relação ao governo e aos partidos políticos. O objetivo originário era evitar que ela fosse controlada por um único partido político, de modo que ela obtivesse vantagens materiais ou eleitorais, daí a sua estruturação para garantir um controle recíproco entre os partidos políticos[11].

O paradoxo de uma agência reguladora consiste no fato de que o objetivo originário é o de garantir a tomada de decisões de forma autônoma diante de questões técnicas e complexas, contudo, ela não é propriamente integrada em seu corpo diretivo por experts,  mas por membros indicados pelos partidos políticos e referendados pelo presidente e pelo Senado.

Para o cumprimento de seus objetivos institucionais, atribui-se à FCC uma série de competências.

A FCC dispõe de diversas competências. No que tange à regulação do setor de comunicações. Segundo a referida lei, quando se trata de aplicação dos serviços e dos termos das licenças “a comissão deve garantir a outorga de uma licença a qualquer solicitante desde que haja conveniência, interesse e necessidade pública, nos termos da lei”[12].  A agência reguladora norte-americana FCC detém a competência para regular em bloco o setor de comunicações, não havendo a fragmentação regulatória entre o setor de telecomunicações e o setor de radiodifusão.

Ela ainda dispõe de competência normativa que lhe permite baixar normas de regulação do setor de radiodifusão e dispor sobre controvérsias.

4.    França: Conselho Superior do Audiovisual francês

(Conseil Supérieur de l’Audiovisuel)

Na França, a ideia de garantir a independência do setor de comunicação audiovisual em face do poder político, mediante a instituição de uma autoridade reguladora independente, foi concretizada, originariamente, no ano de 1982, com a criação da haute autorité encarregada da proteção ao principio da liberdade de comunicação social, incluindo a regulação tanto da comunicação audiovisual quanto das telecomunicações[13]. Com a lei de 1986, foi criada a Comission Nationale de la Communication et des Libertés ( CNCL), como sucessora da haute autorité, e, diferentemente desta, incompetente para tratar do setor de telecomunicações, mas apenas com a atribuição de tratar do setor audiovisual, especificamente a competência para outorgar autorizações[14].

Em 1989, é instituído o Conselho Superior do Audiovisual (CSA) em substituição ao CNCL, uma autoridade administrativa independente encarregada da regulação do setor audiovisual na França, composta por nove membros nomeados por decreto do presidente da República (três membros designados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembleia Nacional e pelo presidente do Senado), cujo mandato é de seis anos irrevogáveis e não renováveis[15].

Na França, atualmente, também há uma autoridade administrativa reguladora do setor de telecomunicações e dos serviços postais (originariamente, l’autorité de régulation des télecommunications (ART) que, mediante a lei de 1996, foi transformada na autorité de régulation des communications electroniques et des postes – Arcep) e outra autoridade reguladora do espectro radioelétrico (Agence Nationale des Fréquences – ANFR, criada pela lei de telecomunicações de 26 de julho de 1996).

O Conselho Superior do Audiovisual é uma autoridade reguladora independente que tem por função a garantia do exercício da liberdade de comunicação, o respeito pelos editores de princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, ordem pública e expressão pluralista das correntes de opinião, honestidade da informação), a proteção da infância e da adolescência, a comunicação publicitária, telecompras, patrocínio, regime de difusão de obras cinematográficas e audiovisuais, defesa da língua francesa, a utilização das frequências radioelétricas[16].

O CSA tem, entre outras, as seguintes competências: nomeação de cinco personalidades qualificadas no conselho de administração da France Télévisions; promover nomeações em outros estabelecimentos públicos do setor audiovisual; elaboração de regras sobre sua organização administrativa, das condições técnicas de utilização das frequências; exercício do direito de réplica; emissões de expressão direta; código deontológico aplicável a seus membros; monitoramento do conteúdo da prestação do serviço de televisão; e também tem um  papel consultivo em  relação ao Parlamento e ao governo, na proposição de leis ou regulamentos em matéria de radiodifusão; e a aplicação de diversas sanções aos operadores, distribuidores e editores dos serviços de rádio, de televisão, etc.

A autoridade reguladora também tem por competência a atribuição de autorização para o uso de bandas de frequências  para os serviços de comunicação audiovisual difundidos por via hertziana terrestre (rádios locais, televisões nacionais e locais).

É importante destacar que, com o novo marco jurídico, houve a unificação do regime de distribuição de serviços (redes de cabo, satélites e demais operadores de TV por ADSL) com o regime do serviço de rádio e televisão. Nesse contexto, a lei confere competência ao CSA para regular os diferentes tipos de serviços de comunicação audiovisual. A sua autuação incide sobre os difusores de rádio e de televisão do setor privado e do público, como também os distribuidores dos serviços de rádio e de televisão. Sua competência limita-se, no entanto, aos “verdadeiros” serviços de rádio e de televisão, independentemente do meio técnico adotado para a difusão do sinal. É possível que o CSA autorize a utilização de uma “frequência audiovisual” para a prestação de serviços de comunicação eletrônica (principalmente telefonia), depois de aviso conforme a Arcep (autoridade de telecomunicações e serviços postais).

Todos os distribuidores de serviços de comunicação que fazem uso de uma rede de comunicação eletrônica, que não utiliza as frequências radioelétricas, estão submetidos a um regime de autorização para a instalação de redes de cabo em comunidades, que foi substituído por um regime de declaração prévia junto à Arcep.

5.    Atribuição de poder regulatório sobre o setor de radiodifusão à Anatel

Um dos principais problemas do Brasil em termos de democratização da televisão é a deficiente regulação estatal, eis que o interesse setorial, em articulação com o poder político, sobrepuja o interesse da sociedade brasileira. Conforme lições do professor Fábio Konder Comparato: “a regulação do sistema de comunicação como um todo, incluindo nesta era de multimídia o conjunto dos canais de telecomunicação por via telefônica, tornou-se, no presente, uma matéria constitucional por sua natureza” [17].

Em função disso, torna-se necessária a respectiva regulação, por intermédio de uma agência autônoma dos serviços de televisão por radiodifusão, em relação ao poder político (especialmente, o poder do governo – presidente e Ministério das Comunicações) e ao poder econômico (empresas de mídia nacionais e internacionais e agências de publicidade) [18].

Além disso, a regulação estatal pressupõe a existência de uma atividade econômica.

Com efeito, só faz sentido falar em regulação quando se trata de uma atividade de mercado. Essa é a principal razão para a instituição de uma agência reguladora. Por isso a televisão comercial deve ser entendida como uma atividade econômica em sentido estrito e não mais como serviço público, logo a figura da concessão deve ser abandonada e aplicada a autorização administrativa.

Aqui, adota-se uma postura crítica diante da separação promovida de modo circunstancial pela Emenda Constitucional nº 08/95, entre os setores de telecomunicação e radiodifusão, defendendo-se a modificação do ordenamento jurídico, para atribuir competência regulatória à Anatel sobre os serviços de televisão por radiodifusão. Assim, permite-se a relativização da separação entre os dois universos, promovendo alguns passos em direção à aproximação recíproca.

A medida proposta justifica-se pelas seguintes razões: o processo de convergência de tecnologias e de prestação de serviços em matéria de comunicações eletrônicas requer a unidade regulatória; evita-se a confusão da atribuição de competência entre distintas entidades, o que compromete a segurança jurídica; aproveita-se a experiência da Anatel em termos de regulação setorial sobre os serviços de telecomunicações; facilita-se a adoção de uma política nacional de comunicações diante da internacionalização da mídia; a implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, em razão de sua própria dinâmica requer um órgão especializado no tratamento das questões técnicas que lhe são subjacentes; e os demais serviços de televisão por assinatura já se encontram sob a jurisdição da referida agência.

Nesse contexto, algumas alterações no direito positivo precisam ser feitas tanto na Constituição Federal quanto na legislação infraconstitucional.

Defende-se aqui a proposta de modificação do ordenamento jurídico brasileiro, na forma de emenda constitucional, alterando-se o art. 223, § 1º, § 2º, § 4º, e o art. 49, XII, da CF, para atribuir as competências então conferidas ao poder Executivo e ao poder Legislativo (ato de outorga, ato de renovação e ato de não renovação) e ao poder Judiciário (ato de cancelamento do ato de outorga), à Anatel, dotada de plena autonomia em face do poder político e do poder econômico, coma participação da cidadania brasileira nos procedimentos de outorga, renovação, entre outros.  Com efeito, sua autonomia é “caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira”, nos termos do art. 8º, § 2º, da Lei nº 9.472/97[19]. A atribuição de competência regulatória à referida agência em relação ao setor de radiodifusão só tem sentido se ela dispuser do poder de outorga, normatização e fiscalização em relação às emissoras de televisão por radiodifusão.

Além disso, deve-se alterar a Lei Geral de Telecomunicações, a fim de incluir tal competência à Anatel, transformando-a em uma Agência Nacional de Comunicações. Ora, se há um ministério das Comunicações, nada mais razoável do que a existência de uma agência especializada em matéria de comunicações, independentemente da tecnologia adotada. Ao ministério competirá a elaboração da política pública em matéria de comunicações, enquanto à agência caberá a definição e a execução da política regulatória. Nesse sentido, o modelo proposto aproxima-se da experiência da Federal Communications Comission dos EUA, que tem por objeto justamente todas as modalidades de serviços de comunicações, independentemente da plataforma tecnológica adotada.

No atual momento histórico, entende-se como inconveniente a criação de mais uma agência especializada unicamente no setor audiovisual.

De fato, o conteúdo audiovisual é objeto de tratamento especial pela Constituição, razão pela qual impões um estatuto específico. Contudo, isso não exige necessariamente uma agência especializada somente no setor da comunicação audiovisual.

Por outro lado, entende-se como inconveniente a atribuição de competência regulatória dos serviços de televisão à Agência Nacional de Cinema, algo que se pretendia em sua modelagem originária, Isso porque, em razão do processo de convergência de tecnologias, entende-se que o modelo da Anatel já atende, de certa forma, às necessidades de regulação setorial, bastando apenas sua reformulação.

Portanto, é perfeitamente possível atribuição à Anatel da regulação em termos de conteúdo audiovisual. É que a separação entre a regulação da infraestrutura e do conteúdo audiovisual acaba enfraquecendo a própria proteção a este último. Em regra, quem detém os meios de comunicação é que determina quais conteúdos serão veiculados pelas redes de difusão. No Brasil, a disciplina das redes há de ser feita em harmonia com o tratamento dos conteúdos audiovisuais, sob pena de ineficiência. Um dos mecanismos para neutralizar o poder dos proprietários e/ou controladores das redes é a promoção da regulação, em conjunto, em favor da produção do conteúdo audiovisual. Com isso, minimiza-se o risco do controlador da rede impor condições excessivas para transporte de conteúdo audiovisual de outros concorrentes[20].

Sintetizando, ao invés de separação entre os setores de telecomunicações e radiodifusão, deve ocorrer uma aproximação entre os mesmos, justamente em razão do processo de convergência tecnológica, ainda mais acentuando pela implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital.

6.    Conclusões

É fundamental para o Estado democrático de direito a criação de um órgão regulador dos serviços de comunicação social efetuado pelas emissoras de televisão por radiodifusão. É inadmissível, em um país que pretende ser uma democracia material, a ausência de regulação sobre a mídia eletrônica. Pensar de modo contrário é submeter o interesse da sociedade brasileira ao mero interesse econômico do setor de radiodifusão. Em verdade, a regulação estatal, a par de servir ao interesse público, serve ao próprio mercado e à liberdade de radiodifusão. Se, de um lado, é imprescindível evitar os abusos praticados pela liberdade de radiodifusão, também é necessário restringir os abusos estatais contra ela cometidos. Daí o importante papel da função regulatória desempenhada por uma agência reguladora autônoma, para evitar o abuso do poder econômico e do poder político, em garantia do pluralismo econômico e político e do equilíbrio entre os sistemas de radiodifusão. Assim, uma das propostas aqui sustentadas é atribuir a uma agência especializada competência para regular o setor de radiodifusão.

Em uma visão mais aberta, a liberdade econômica até pode ser considerada como um fim em si, servindo aos interesses capitalistas dos proprietários e/ou controladores da empresa. Nesse contexto, a regulação estatal serve apenas para tratar das falhas do mercado, especialmente quando surgem monopólios e/ou oligopólios. Contudo, tal entendimento sequer é majoritário, mesmo em um dos países de acentuada tradição liberal como é o caso dos EUA.

No contexto de um Estado democrático de direito, a regulação estatal tem que garantir o justo equilíbrio entre o poder econômico das organizações da mídia e o poder político, sob pena da liberdade dos meios de comunicação social tornar-se um fator de domínio da sociedade e de estrangulamento do sistema político. Aqui, a liberdade de comunicação deve não só favorecer os proprietários dos meios de comunicação, como também o público destinatário dos respectivos serviços, na qualidade de consumidores e de cidadãos.

Enfim, são inúmeras as vantagens com a existência de um órgão regulador: ganham a sociedade, o mercado e o próprio Estado. A sua inexist~encia é que traz diversas complicações: insegurança jurídica, falta de adequada tutela aos consumidores e aos cidadãos, excessiva politização do sistema de radiodifusão, ausência de garantia de acesso aos canais de televisão pelos grupos sociais etc. Nesse contexto, o Conselho de Comunicação Social poderia atuar como um órgão regulador da comunicação social, desde que houvesse modificação no sistema jurídico. Ou, como defendo, a Anatel poderia ser transformada em uma agência das comunicações eletrônicas em geral, independentemente da plataforma tecnológica adotada. Agora, independentemente de quem possua a competência regulatória (se o Conselho de Comunicação Social ou a Anatel), o fundamental é a autonomia do órdão regulador diante do poder político (e, particularmente, do governo) e do poder econômico (a fim de evitar a sua captura pelo mercado).

Referências

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[1] A bem da verdade, a Lei nº 4.117/62 previu a figura do Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) na qualidade de órgão encarregado da execução da política pública em matéria de telecomunicações, cujos membros devem ser cidadãos brasileiros de reputação ilibada, e notórios conhecimentos de assuntos ligados aos diversos ramos de telecomunicações (art.28). Com o Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que trata da reforma administrativa, é criado o Ministério das Comunicações, e alterados e reduzidos os poderes do Contel, transformado em um órgão de consulta. Para aprofundar o tema, consultar Vianna (1993).

[2] Para uma análise dos interesses comerciais envolvidos quando da aprovação da Lei Geral das Telecomunicações e da privatização das comunicações, conferir: Mídia: teoria e política, p.115-136. Conforme Venício Lima: “Essa nova política favorece a concentração  da propriedade porque não impede a propriedade cruzada dos grupos empresariais de telecomunicações, comunicação de massa e informática, e estimula a participação crescente dos global players, diretamente ou associados aos grandes grupos nacionais, na medida em que elimina todas as barreiras para a entrada do capital estrangeiro”.

[3] Segundo Murilo César Ramos, o interesse quanto ao destacamento dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e de imagens era tanto do Poder Executivo em rapidamente acelerar o processo de liberalização do setor de telecomunicações quanto dos radiodifusores em ficar fora do âmbito de qualquer órgão regulatório que não fosse o Ministério das Comunicações, submetido ao velho Código Brasileiro de Telecomunicações.

[4] Para uma análise mais aprofundada a respeito das propostas de democratização da comunicação, no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, consultar Pereira (1987).

[5] A noção de “public utilities” tem como pressuposto a categoria “ business with a public interest”,  originando-se nos Estados Unidos, a fim de justificar a intervenção estatal, por meio do legislador, sobre a fixação de preços de serviços ou mercadorias em detrimento do proprietário. Para uma visão histórica da categoria de public utilility como “business clothed with a public interest” nos Estados Unidos, à luz da jurisprudência da Suprema Corte, conferir Kahn (1988).

[6] Themístocles Cavalcanti (1964), ao tratar da diferenciação entre os serviços públicos e os serviços de utilidade pública, explica o seguinte: “Essa distinção é mais comum nos Estados Unidos, onde as public utilities obedecem a um regime peculiar. Naquele país, a intervenção do Estado não é grande, embora se tenha verificado, nos últimos anos, uma intromissão maior do Estado em certos serviços. Constituem-se, entretanto, grande parte dos serviços públicos, por iniciativa particular sob a denominação de public utilities, cuja definição, como vimos, depende de condições variáveis. Daí a afirmação de Bielsa que public itility é aquele serviço considerado tal pelos tribunais”.

[7] Gaspar Arino Ortiz promove a relativização da distinção entre os serviços públicos do direito administrativo da tradição franco-germânica e as public utilities anglo-saxônicas, citando duas decisões em que foi afirmada a titularidade estatal sobre as public utilities, manifestando-se no seguinte sentindo: “mesmo em um modelo teórico (a doutrina das public utilities) que se diz mais afinado com as teses privatizadoras e liberais das atividades econômicas, a tese da titularidade estatal dessas atividades essenciais chegou a ser igualmente formulada”.

[8] Em postura de contestação, Alexandre Aragão (2002) entende que, embora tenha ocorrido em um ou outro acórdão proferido nos EUA uma manifestação episódica da titularidade estatal, “as diferenças básicas entre a sistemática anglo-saxônica e a franco-germânica são mantidas”.

[9] O direito norte-americano apresenta diversos níveis de aplicação da primeira emenda (liberdade de expressão) em relação às múltiplas tecnologias de comunicação. Como explicam Harvey Zuckmann e outros, a questão fundamental não é saber se existem diferenças técnicas entre os meios de comunicação, mas se tais diferenças justificam distinções constitucionais entre os diversos.

[10] Além do Media Bureau, a FCC é constituída pelo International Bureau, Wireless Telecommunication Bureau e Wireline Competition Bureau.

[11] Cf. Shapiro (1996) e Carbonell (1996). Apesar desse fato, as agências independentes não atuam à margem da política pública em termos de comunicações traçada pelo chefe do poder Executivo e pelo Congresso. Em verdade, não há uma independência em relação à política, à medida que seus membros são nomeados pelo presidente, como também os respectivos funcionários do gabinete, Além disso, a independência não afasta o controle efetuado pelo Congresso a respeito de suas atividades. Nesse caso, o poder Legislativo tem o dever de identificar os erros e as responsabilidades em relação à gestão da agência federal, efetuando o controle politico e o controle econômico-financeiro.

[12] Cf. Communications Act of 1934, alterado pelo Telecommunications Act de 1996.

[13] Ver Debasch (1995).

[14] Ver Vespignani (1998).

[15] A independência dos membros do CSA é garantida, além do mandato, pelo regime de incompatibilidade com mandato eletivo, emprego público e qualquer outra atividade profissional. Eles não podem receber honorários 9salvo aqueles anteriores ao exercício do mandato no CSA), nem deter interesses em uma empresa de audiovisual, cinema, imprensa, publicidade ou telecomunicações. Até cinco anos após o exercício do mandato, os ex-membros do CSA não podem receber participações por trabalho, conselho ou capitais nas empresas audiovisuais ou na imprensa escrita (Debasch, 1995).

[16] Balle (2005). Com a criação do Conselho Superior do Audiovisual francês há certo retrocesso em relação à fórmula originária da Comissão Nacional de Comunicação e Liberdades, haja vista a diminuição de seus poderes e a respectiva transferência ao governo. Não lhe foi atribuído, portanto, competência regulamentar tendo em vista restrição imposta pela jurisprudência do Conselho de Estado (Vespignani, 1998). Conferir, também, Bellescize e Franceschini. A competência do CSA quanto à disciplina da utilização do espectro radioelétrico, para fins de prestação de serviços de comunicação audiovisual, não se confunde com a competência da Agência Nacional de Frequências (Agence Nationale des Fréquences – ANFR0. Essa última agência reguladora é a responsável pela coordenação do espectro radioelétrico entre os diversos entes, aos quais tenham sido atribuídas frequências para a emissão, como é o caso do CSA. Entre outras funções, compete à ANFR: garantir a gestão eficaz do espectro radioelétrico e elaborar propostas de melhorias de sua utilização, coordenar o posicionamento francês nas negociações internacionais relativas ao uso do espaço radioelétrico, coordenar a implantação no território nacional de estações radioelétricas, organizar e coordenar o controle de utilização de frequências, manter um fundo de gestão do espaço radioelétrico para facilitar a evolução no uso das frequências (Bernal).

[17] Ver Comparato (2001).

[18] Nesse sentido, é importante fazer uma justa homenagem ao professor Fábio Konder Comparato, que há tempos sustenta a necessidade de um órgão administrativo autônomo para cuidar da regulação e fiscalização do setor de comunicação social.

[19] Conforme dispõe a Lei Geral de Telecomunicações em seu art. 23: “Os conselheiros serão brasileiros, de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de sua especialidade, devendo ser escolhidos pelo presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art. 52 da Constituição Federal”, sendo que “o mandato dos membros do Conselho Diretor será de cinco anos” (art. 24).

[20] Um dos fundamentos para a restrição do poder dos proprietários dos meios de comunicação consiste justamente na função social da propriedade. A esse respeito, consultar: Maluf (2005); Bacellar Filho (2007).

Revista de Direito Administrativo, v. 249, Belo Horizonte: Editora FGV e Fórum, pág. 49-61, 2008.