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Ecologia da escuta dos ruídos nas cidades causadas por tecnologias mecânicas ineficientes e insustentáveis ambientalmente. Cidadania ecológica, sustentabilidade ambiental acústica e a proteção da saúde, descanso e bem estar públicos

23/05/2022

Em âmbito internacional, a contenção dos ruídos é um assunto sério e está associado à saúde pública. A Organização das Nações Unidas tem seu relatório anual sobre programas ambientais, aonde analisa as medidas para  mitigação dos ruídos. Ver: Noise, Blazes and Mismatches, emerging issues of enviromental concern. UN environment programme, Frontiers, 2022. Na União Europeia há o Silence projet com recomendações das medidas para a contenção de ruídos nas cidades. Ver: Practitioner Handbook for local noise actions Plans. Recommendations from the Silence project. Também, o governo de Welsh tem um programa antirruídos interessante: Noise and soundscape action plan – 2018-2023, Welsh Government.  Outro texto de referência importante é o da Organização Mundial da Saúde: Environmental Noise Guideline for the European RegionA sustentabilidade ambiental sonora é um tema para os programas de cidades inteligentes, sustentáveis e saudáveis. Não há política ambiental séria sem o controle de poluição sonora, mediante medidas antirruídos. Além disto, a temática antirruídos encontra-se no contexto da segurança ambiental/ecológica. Como o ruído é um agente de stress da saúde humana, então deve necessariamente estar relacionado à segurança ambiental. No Brasil, infelizmente, não temos ambiente normativo adequado para a contenção dos ruídos. Também, não temos programas ambientais para a mitigação dos ruídos urbanos. Por isto, o foco do presente artigo é o detalhamento dos principais aspectos relacionados ao impacto dos ruídos sobre a saúde, sossego e o bem estar humanos.

A audição é um dos sentidos do corpo humano pouco compreendido. Porém, o estudo sistemático revela um universo fantástico de sons. Para além dos sons agradáveis, há também os ruídos, agentes ofensores, estressores e tóxicos. A perda de audição e/ou da saúde auditiva é um fator grave. O filme vencedor de diversos Oscar em 2022, denominado Coda (No Ritmo do Coração) apresenta a fascinante história de uma família de deficientes auditivos e seus desafios para terem seus direitos respeitados pela maioria. A audição proporciona a percepção do espaço. É fundamental para a geolocalização do corpo e a distância no ambiente.  A função da audição é estabelecer a conexão entre o ambiente interno (corpo humano), com o ambiente externo. Os ouvidos têm esta capacidade da percepção acústica do ambiente, inclusive de fazer ressoar no corpo sons. Os ouvidos estão ligados pelos nervos auditivos ao cérebro. Pessoas têm diferentes sensibilidades sobre os ruídos. Há grupos de pessoas hipersensíveis aos ruídos como é o caso dos autistas e das pessoas com ouvido absoluto. Sobre o tema, o Spatial Sound Institute da Bulgária tem um programa de educação ambiental acústica.[1]

Os programas educacionais utilizam das artes para despertar a consciência ambiental sonora. O órgão cerebral é capaz de detectar ameaças ambientais à sobrevivência humana. O sistema de alerta do organismo está associado à audição. Há uma relação entre ruídos e a segurança ambiental. Portanto, a partir da audição, o cérebro é capaz de sentir ameaças à sobrevivência.[2] O aumento da poluição sonora nas cidades causa o aumento da pressão sonora na atmosfera. Quanto mais ruídos na atmosfera, maior a degradação ambiental! Pressão sonora é equivalente à pressão arterial! Quando maior pressão maior a ameaça e os risco à saúde humana.  Há riscos cardiovasculares com os ruídos urbanos.  A percepção dos ruídos está ligada a este instinto de sobrevivência. Ruídos urbanos causados por máquinas são uma anomalia mecânica. É o símbolo da ineficiência da tecnologia mecânica. Ruídos urbanos é uma epidemia, projetam uma experiência desagradável e causam uma subcultura de mal estar.  Ruídos são tóxicos, assim intoxicam o meio ambiente.

O poluidor acústico tem vícios patológicos. Há uma compulsão em seu comportamento de causar ruídos. Por dolo e/ou por culpa o agente poluidor produz os ruídos. O poluidor acústico é viciado no barulho. Ruídos são provocados por comportamentos antissociais, abusivos e anti-sustentáveis.

Ora, há regras e aplicação destas regras sobre o lixo orgânico e reciclável. Há sanções aplicáveis à pessoa que descumpre as regras do lixo. Ora, ruídos são lixos sonoros, por devem ser aplicáveis às regras ambientais. Ruídos causam a sujeira no ar. Porém, na prática, não há o controle da poluição sonora, tal como ocorre da poluição do lixo nas cidades. Por isto, há tratamento discriminatório entre a poluição sonora em relação à poluição do lixo. Há, também, regras para o controle do ato de fumar, proibindo-se fumar cigarros em áreas privadas e públicas. Por que não há o controle dos ruídos? Por isto, a necessidade de medidas de prevenção, educação e repressão para o controle dos ruídos. Ruídos representam a ruptura com a garantia da inviolabilidade domiciliar, pois invadem a propriedade privada nas cidades. Elas causam verdadeiro apossamento indevido da propriedade alheia, causando danos ao direito à moradia.  Ruídos invadem o espaço acústico das residências, causando a ofensa ao direito à paz e quietude residencial e o direito à privacidade.   Ruídos são produzidos por verdadeiras armas acústicas (acoustic weapons), por isto representam uma ameaça à saúde pública.  Para ter uma ideia, uma das empresas principais fornecedores de equipamentos de jardinagem foi um das criadores das motosserras.

Esta tecnologia mecânica da motosserra foi aproveitada para a criação das roçadeiras, podadores e cortadores de gramas. Acontece que esta tecnologia mecânica e barulhenta da motosserra foi criada para ambientes rurais de matos e florestas. E, simplesmente, a indústria transplantou esta tecnologia mecânica para o ambiente urbano para ser utilizado em jardins nas cidades. Uma situação é a utilização da motosserra em áreas rurais, sem população. O operador da motosserra está sozinho diante do mato e da floresta, derrubando árvores, fazendo barulho, sem gente por perto. Outra situação totalmente diferente que é impacto desta tecnologia mecânica barulhenta para o ambiente urbano, com alta densidade humana por bairro. A indústria, portanto, sequer preocupou-se em adaptar a tecnologia mecânica, no contexto de sua eficiência acústica e de sustentabilidade ambiental. 

Há dois crimes relacionados aos ruídos: O crime de perturbação ao trabalho e sossego (Decreto-Lei de contravenções penais, art. 42). Há o crime de poluição sonora previsto na Lei n. 9.605/1998, art. 54). Por esta mesma razão, os ruídos deveriam ser objeto de maior atenção no âmbito da segurança pública, pois existem estes crimes de perturbação ao trabalho e sossego e de poluição sonora.  Ruídos são uma anormalidade.  Deveriam ser realizadas campanhas de prevenção à ocorrência destes crimes. No entanto, os ruídos são considerados, absurdamente, como algo normal e natural. Há a “naturalização” dos ruídos, algo absurdo.  Há uma manipulação da percepção. Algo artificial (ruídos) é percebido como normal. A bem da verdade, a quietude é que é natural. Por isto, há uma dissociação cognitiva grave. Uma verdadeira insanidade ao se “normalizar” os ruídos na cidades. Sem dúvida alguma, o ser humano é capaz de se adaptar e agir em conformidade com a massa.  Porém, esta adaptação e conformidade podem ocorrer em níveis patológicos, em prejuízo à saúde humana. Deste modo, o ser humano pode até “tolerar “os ruídos, porém seu corpo, sua mente e sua fisiologia serão afetados conscientemente ou inconscientemente pelos ruídos”. Deus foi o grande engenheiro acústico ao criar o mundo silencioso. Não é toa que o sagrado está associado ao silêncio! Existe a mecanização e seu impacto no ecossistema de vida. Ruídos, em sua etimologia, derivam da palavra náusea. Ruídos provêm de diversas fontes. São equipamentos de jardinagem em condomínios, serviços de obras em condomínios, automóveis, motocicletas, entre outros. Ruídos impactam a cognição, a saúde, o descanso, o bem estar e o meio ambiente. Conforme lições de Lewis Mumford, em Technic and Civilization, New York, 1936, p. 364, “a disciplina mecânica e muitas das invenções primárias”… Não foi a eficiência técnica, mas a santidade ou o poder sobre outros seres humanos. No decorrer de seu desenvolvimento, as máquinas ampliaram esses objetivos e forneceram um veículo para a sua realização”.[3] Sobre o tema, consultar ainda: Carlos Fortuna, em seu artigo. O mundo social do ruído: contributos para uma abordagem sociológica. O autor aponta os malefícios dos ruídos sobre a dimensão sensorial do espaço público e a “naturalização” de algo patológico, mediante o conformismo e não percepção da realidade, uma espécie de dissonância cognitiva quanto à percepção do ambiente sonoro das cidades.[4] A partir desta premissa, precisamos distinguir os diversos ambientes.

ambiente natural, aquele dos sons da natureza: chuva, canto dos pássaros, trovões, movimento das folhas das árvores, vento, etc. O ambiente natural é promotor da quietude.  O ambiente humano, representado pela voz e  a comunicação humana. Há o ambiente artificial/mecânico/tecnológico  das máquinas elétricas/mecânicas. Atualmente, a anomalia encontra-se na hierarquização das máquinas /ambiente artificial sobre o ambiente natural e humano. Por isto, precisamos  superar a subcultura tóxica dos ruídos.  Precisamos de uma contracultura antirruídos. O estado natural é de quietude, apenas máquinas é que produzem ruídos intensos. O estado natural do corpo é de equilíbrio. Os ruídos perturbam este equilíbrio orgânico. Necessitamos superar a subcultura  tóxica do mal estar sonoro para a cultura do bem estar acústico e da quietude urbana.  Deste modo, precisamos da cultura ambiental acústica, com a conscientização ambiental sonora.  Por isto, o ambiente cultural saudável é uma demanda, como também a cultura da quietude urbana.  

Precisamos de ambiente regulatório com incentivos à autocontenção e autorregulação dos ruídos (pela indústria, condomínios, prestadores de serviços, entre outros). E, também, necessitamos da regulação dos ruídos pelos governos e legisladores. Há falhas regulatórias no tema e faltam campanhas de educação ambiental acústica.  Existem falhas de mercado na produção de equipamentos elétricos/mecânicos, bem como na prestação de serviços de jardinagem, por exemplo.  O direito deve incentivar práticas de eco humanidade, eco urbanidade, eco design e eco eficiência voltados à promoção da sustentabilidade ambiental acústica. Necessitamos do alinhamento do direito ao meio ambiente e à cultura biológica da vida, superando-se a visão mecanicista.[5] Precisamos de cidades sustentáveis acusticamente, condomínios sustentáveis acusticamente, mobilidade urbana sustentável acusticamente, obras de construção civil sustentáveis acusticamente.  Por todas estas razões, necessitamos de políticas públicas para a regeneração ambiental acústica das cidades (o ambiente natural é de quietude), bem como práticas de sustentabilidade ambiental acústica em condomínios, com melhores padrões para a contenção dos ruídos.  Necessitamos que a indústria, a sociedade civil e o governo estejam comprometidos com a sustentabilidade ambiental e o princípio da eficiência acústica. Somente teremos cidades inteligentes, saudáveis e sustentáveis com melhores práticas de contenção dos ruídos urbanos.

Precisamos de padrões de eficiência acústica, de modo semelhante aos padrões de eficiência energética adotados em políticas de controle da poluição atmosférica e cumprimento das metas climáticas.[6] Enfim, a arte de escutar os ruídos nas cidades e nos condomínios pode contribuir para a evolução da consciência ambiental e a promoção da sustentabilidade ambiental sonora e  contracultura antirruídos.  Precisamos superar a anomalia e ineficiência mecânica dos ruídos, promovendo-se a cultura das tecnologias eco sustentáveis sonoramente.

 ** Todos os direitos reservados, não podendo ser reproduzido ou usado sem citar a fonte.

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito do Estado. Doutor em Direito pela USP. Autor do livro Propostas Regulatórias – Anti-Ruídos Urbanos, Amazon, 2022. Apoiador do Movimento AntiRRuídos: www.antirruídos.worldpress.com


[1] www.spatialsoundinstitute.com

[2] Sobre o papel do cérebro na percepção de ameaças à sobrevivência, ver: Mc Farland, Walter e Goldsworthy. Choosing. How leaders and organizations drive results on person at a time change.  New York: Mc Graw Hill,2014.

[3] Ver: Marcuse, Marcuse. Tecnologia, Guerra e fascismo. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 73.

[4] Fortuna, Carlos. O mundo social do ruído: contributos para uma abordagem sociológica. Análise social. N. 234, p. 28-71. www.doi.org.

[5] Capra, Fritjof e Mattei, Ugo. A revolução jurídica ecojurídica. O Direito sistêmico em sintonia com a natureza e a comunidade. São Paulo: Cultrix, 2018.

[6] Caldeira, Jorge, Sekula, Julia e Schabib, Luana. Brasil. Paraíso restaurável. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020, p. 99

Crédito de Imagem: Pinterest

Ericson M. Scorsim

Advogado e Consultor em Direito da Comunicação. Doutor em Direito pela USP. Autor da Coleção Ebooks sobre Direito da Comunicação com foco em temas sobre tecnologias, internet, telecomunicações e mídias.