Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito Público. Doutor em Direito pela USP. Autor da Coleção de Livros sobre Direito da Comunicação.
As raízes democráticas de um povo são a maior conquista civilizatória. Mas, estas raízes devem prover dos cidadãos, o elemento civil. Assim, o governo civil é o maior símbolo da evolução democrática. Porém, quando um país optar por caminho de militarização de seu governo civil é um grave sintoma de que há algo de errado nesta jornada. Ainda, quando este País passou por um período de retrocesso histórico representado por duas décadas de regime de ditadura militar.
Por este texto para ampliar a reflexão sobre o princípio do controle civil das forças armadas. No Brasil, em 2020, houve o debate sobre o papel das forças armadas. De um lado, uma corrente autoritária e antidemocrática sustentou a possibilidade de intervenção das forças armadas na hipótese de conflito entre os poderes da República. De outro lado, a doutrina constitucional e democrática que defende a tese de inexistir poder moderador às forças armadas. O Supremo Tribunal Federal na ADI n. 6457, Rel. Min. Luiz Fux, acolheu esta última tese, ao afirmar que não cabe às Forças Armadas o papel de moderador dos conflitos entre os Poderes da República. A decisão do Supremo Tribunal Federal esclarece a natureza das forças armadas como instituição de Estado e não como órgão do governo. O debate constitucional foi realizado a respeito da interpretação do art. 142 da Constituição Federal.[1] O objetivo do presente texto é aprofundar a noção do princípio do controle civil das forças armadas, isto é, a subordinação das autoridades militares ao comando civil. Neste sentido, há a hierarquia do comando civil sobre a autoridade militar. A autoridade militar esta subordinada à autoridade civil. Esta é a base do princípio do Estado Democrático de Direito. O núcleo básico é controle da influência política das forças armadas no governo civil, bem como o controle da influência política sobre as forças armadas, para se evitar o risco de sua utilização abusiva pelos governos civis, para realização de jogos políticos-eleitorais e ações espetaculares na mídia.
Nos Estados Unidos, este princípio está enraizado na ordem democrática. Sobre o tema, aliás, um dos pensadores conservadores e doutrinadores do tema Samuel P. Huntington escreveu a obra The Soldier and the state. The theory and politics of civil-military relations, The Belkan Press of Harvard University Press, Cambridge, 1957. Para o autor a participação de militares em governos civis representa a negação do princípio do controle civil das forças armadas. Para ele, o que deve imperar na corporação militar é a profissionalização, mediante o afastamento dos militares da política doméstica nacional. E, ainda sobre o tema, já escrevi o artigo Em defesa da maximização do controle civil das forças armadas e de seu profissionalismo. A necessária compreensão da questão democrática e militar, publicado no Portal Direito da Comunicação (www.direitodacomunicacao.com), em 29/7/2020. Em outro artigo, também, escrevi: O Brasil, a Constituição os limites à autoridade da Presidência da República e os riscos de politização das forças armadas, publicado no Portal Direito da Comunicação, 25 de maio de 2020. A propósito dos objetivos do controle civil das forças armadas, Anaís Medeiros Passos explica: “Mais especificamente, alguns dos objetivos de submeter os militares à supremacia civil são: proteger os direitos humanos de todos os membros da sociedade, alinhar os objetivos políticos de lideranças civis e militares, legitimar o uso da força por grupos associados ao estado e reduzir os poderes discricionários dos militares”.[2] Ora, o atual governo do Brasil aumentou a participação de militares no governo federal, inclusive em cargos civis, fato que coloca em risco o princípio do controle civil das forças armadas. Há militares na Casa Civil, Ministério da Saúde, Ministério da Energia, Correios, Infraestrutura, Empresa Brasil de Comunicação, Autoridade de Proteção de Dados, Petrobras, entre outros órgãos e empresas estatais. A participação de militares no governo civil enseja o pagamento de gratificações, via de regra, de 30 (trinta por cento) de sua remuneração. O problema é utilização de esta convocação presidencial servir como pretexto para a “compra” de apoio pelo Presidente da República do apoio de militares ao seu governo, algo nocivo à democracia.
O fato ensejou a atuação do Tribunal de Contas da União para apurar as irregularidades, com a nomeação de militares em cargos civis. Além disto, destaque-se que a chapa presidencial vencedora das eleições foi formada por um ex-capitão do Exército e por seu Vice, um general da reserva. Ora, será que este tipo de aliança política representa o exército como avalista do governo? O exército está sendo manipulado como em garantia do mandato do Presidente e Vice-Presidente para evitar o risco de um impeachment?
No Congresso Nacional há inúmeros pedidos de impeachment, ainda mais diante da gestão catastrófica em relação à pandemia. Esta é uma pergunta que a história futura responderá, isto é, o nível do envolvimento do exército na política doméstica. Afinal, o exército pode ser avalista de governos? A resposta é, evidentemente, negativa. O vácuo de liderança civil é um fator que agrava a presença de agentes militares na vida pública. A desorganização da política é um fator de risco da militarização da vida pública. Em cenário de crise econômica e social há o “clamor” por forças conservadoras das forças armadas. Estas causas gera consequências nefastas à democracia. O Brasil vive período histórico de intensa polarização política, inclusive com práticas de disseminação de ódio por redes sociais. Por isso, a eventual adesão das forças armadas a determinado grupo político/ideológico é contrária ao espírito democrático.
As forças armadas não podem estar a serviço de determinado grupo político e/ou ideológico em detrimento de outros. O neomilitarismo é representado pela captura das forças armadas por agentes políticos, para fins político-eleitorais. Também, o neomilitarismo está associado à invasão da demagogia nas corporações militares, com a exploração política das forças armadas, por agentes políticos. Outro sintoma é a participação de militares como candidatos em eleições federais, estaduais e municipais. Outro fato é a atuação de militares em redes sociais, com o envolvimento em questões políticas e civis. Além disto, a militarização do ensino com programas de escolas cívico-militares é um sintoma do neomilitarismo. Exemplo infeliz disto é o governo do Paraná que pretende adotar um programa de militarização nas escolas públicas estaduais. Um país deve ter a educação pública, vinculada a valores civis-democráticos.
Esta militarização da educação pública é um desvio de finalidade do Estado. A educação pública deve estar livre de ideologias religiosa e/ou militares. Educação militar em colégios civis é um retrocesso histórico! Adicionalmente há o risco de realização de operações de influência e/ou operações de informações na opinião pública por agentes militares, inclusive o risco de participação em campanhas de desinformação, em benefício de determinado grupo político e/ou familiar, algo que deve ser coibido pelas forças democráticas. O Exército não pode ser manipulado em benefício do nepotismo de uma família. Agentes militares não podem legitimar o nepotismo, à medida que são utilizados para favorecer membros de uma única família. Esta prática é contrária ao princípio republicano. Uma República séria está comprometida com valores democráticos.
Diversamente, uma “republiqueta latino-americana” coloca suas forças militares a serviço da família e amigos no governo. Infelizmente, a América Latina tem inúmeros exemplos de “caudilhos militares” que colocam em risco a credibilidade das corporações militares. É o caso extremo da Venezuela, aonde houve as forças armadas decidiram ir para dentro do governo. Além disto, nos últimos anos, vê-se a atuação intensa das forças armadas em questões da política doméstica, com a intervenção em temas de segurança pública, sendo chamadas para atuar nos estados da federação, em operações de “lei e ordem”. A atuação das forças armadas como força policial tem o condão de representar risco de contaminação tóxica para seus integrantes e para a reputação da corporação. Por exemplo, no México, um dos principais generais do exército participante de ações militares de combate ao narcotráfico foi preso nos Estados Unidos sob a acusação de ser o chefe de uma organização criminosa de narcotraficantes.
Há, portanto, riscos nas forças armadas em ações de combate ao narcotráfico. No Brasil, é preciso “blindar” as forças armadas das interferências políticas para atuação em questões corriqueiras da política doméstica. Afinal, o foco das forças armadas deve ser a defesa nacional, sobretudo contra os riscos de ameaças externas. Por isso, há forças terrestres, aéreas e marítimas e, inclusive forças cibernéticas. No século 21, as forças armadas precisam contar com recursos suficientes para enfrentar os desafios modernos. Sua modernização tecnológica é uma prioridade da defesa nacional. Ora, no Brasil, as forças armadas estão se desviando de sua finalidade institucional de defesa nacional, à medida que se envolvem em questões da administração pública e segurança pública. Ademais, as forças armadas foram convocadas para atuar em temas associados à fiscalização ambiental na região amazônica, bem como ações de enfrentamento ao coronavírus. Enfim, são diversas questões que o governo está requisitando às forças armadas, para além de sua finalidade institucional. Este desvio da finalidade das forças armadas pode ensejar ações de responsabilidade perante a União Federal. Assim, haverá a responsabilização pública das autoridades que convocarem abusivamente as forças armadas em desvio de finalidade. A Constituição do Brasil, em diversos momentos, aponta para o controle civil das forças armadas. Este princípio é a consequência natural do regime democrático e da constituição do governo civil. Por óbvio, uma força armada não pode assumir a direção política de um governo. Uma força armada não pode participar da negociação política, influenciando com o peso de suas armas e de sua farda. Há regras de restrição dos direitos políticos de servidores públicos militares.
Existem normas de limitação à liberdade de expressão e de opinião, para garantir a unidade da corporação militar. Há a proibição do exercício do direito de greve. Há normas sobre impedimento da participação política dos agentes militares. Existem regras sobre a proibição de os militares participarem de atividades sindicais. Portanto, a Constituição da República delimita, com clareza e precisão, os limites à atuação de militares em atividades políticas-partidárias. O propósito constitucional é preservar as Forças Armadas como instituição de estado e não como órgão do governo federal. Por isso se trata de uma carreira de estado, com alta função constitucional. A razão é simples para a existência das regras constitucionais. Se servidores públicos militares começarem a participar de atividades políticas partidárias e/ou extrapartidárias, para obtenção de poder político e/ou disputar o governo, simplesmente haverá a politização das forças armadas. Com a politização dentro das forças armadas haverá, consequentemente, o risco de ruptura com a hierarquia e a disciplina e unidade, necessárias à ordem militar. Há, enfim, o risco de quebra do princípio do comando e controle, vez que divergências políticas podem afetar o cumprimento de missões militares. As bases militares poderão se tornar meras plataformas eleitorais com capacidade de lançar candidatos a cargos eletivos como governadores, deputados, senadores e vereadores. Até mesmo a participação de militares inativos na atividade política tem a capacidade de produzir o risco de politização das forças armadas. Os servidores públicos militares aposentados (denominados da reserva), certamente buscarão influenciar as bases militares em busca de apoio político-eleitoral, criando-se um ciclo de contaminação politizada dentro das forças armadas. Daí a necessidade de um “código de conduta militar” capaz de conter, inclusive a influência dos aposentados sobre a corporação militar. A liberdade de expressão dos militares da reserva deve ser restringida, a bem da unidade da corporação militar. A instituição militar perde – e muito – sua reputação e responsabilidade para com a nação se permitir a participação política de militares na ativa e/ou na reserva. Por isso, os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, finalidade, entre outros, são fatores de contenção do desvio de finalidade da utilização das forças armadas em benefício de determinado grupo político/familiar. Além disto, militares não podem ser usados para criar situações de obstrução de justiça, a mando do Presidente da República. O lema do exército “braço forte mão amiga” deve ser estendido para todos os brasileiros e não apenas para determinada facção política. Outro risco ainda para as forças armadas é o risco de contaminação por milícias, verdadeiras organizações criminosas. Além disto, registre-se que as forças armadas são financiadas pelo sistema da tributação. Logo, é o povo quem financia os custos de manutenção das forças armadas. Um servidor público militar conta com sua remuneração e proventos fixos, para justamente lhe garantir no cargo público, de modo independente. Diversamente do trabalhador comum, o servidor público militar não tem riscos financeiros em sua atividade profissional, como ficar sem renda! O povo brasileiro é marcado por divisões políticas e ideológicas. Há divergência de opiniões políticas.
Logo, se as forças armadas apoiarem um governante e/ou governo, evidentemente, há o risco de perderem legitimidade com outros grupos políticos. Por exemplo, as disputas políticas na sociedade poderão contaminar os quartéis, colocando em risco a unidade da corporação militar. Assim, as forças armadas são responsáveis perante o princípio da soberania popular. Elas estão a serviço de proteção do povo. Jamais poderão servir a facções políticas/partidárias. A lealdade das forças armadas é para com o povo. Em hipóteses extremas de divisão interna do País, há o risco de guerra civil. A título de memória histórica, durante o período do regime de ditadura militar de 1964-1985 no Brasil, houve simplesmente a negação do princípio democrático, com a supressão do direito de voto, eleições e direitos políticos. Também, houve a supressão da liberdade de expressão, mediante práticas de censura e violação de direitos humanos. Portanto, o período representou o retrocesso histórico do Brasil, com a negação da democracia e de repressão aos direitos. Este período sombrio da história brasileira jamais poderá ser relembrado apenas como uma “revolução democrática”. Não, ao contrário, trata-se de golpe militar com apoio civil. Além disto, o período de ditadura foi marcado pelo terrorismo de estado ou por estado terrorista, algo que nocivo às instituições democráticas e ao regime de direitos fundamentais. Precisamos compreender a história brasileira para evitar o risco de repetir a tragédia. A memória histórica correta deve ser restaurada. Não é um período para ser comemorado por ninguém. Raimondo Faoro em palavras exemplares: “Entramos, por uma vereda inesperada, em novo gênero literário, a mitopeia. Manipula-se o passado e manipula-se o presente para enganar o futuro”.[3] Ulisses Guimarães em discurso histórico referiu-se ao seu nojo em relação à ditadura.
Ao contrário, este período da história brasileira deveria ser marcado pelo arrependimento eficaz das forças armadas pelos lamentáveis erros históricos. E, ainda, mero pedido de perdão não significa nada. Aliás, sequer houve o pedido de perdão histórico pelas forças militares. A propósito, recentemente, um filho de militar, cujo pai participou da ditadura está levantando a história de participação familiar no episódio, pois a versão oficial narrada por seu pai não corresponde à verdade. Assim, o filho está resgatando a verdade histórica em relação ao golpe militar. O filho pretende fazer um filme sobre o tema. O sentido de vergonha é que move a atuação do filho. Por isso, nações democráticas investem na profissionalização de suas forças armadas. Há códigos de conduta a serem seguidos pelos servidores públicos militares. Além disto, em nações democráticas, o comando da defesa está sob a alçada civil. Por isso, o Ministério de Defesa deve ser ocupado por agentes civis e não por militares. Entendo que o Ministério de Defesa é um cargo de natureza civil. A nomeação de um civil é para evitar conflitos em disputas políticas entre exército, marinha e aeronáutica. A Defesa Nacional é uma tema relevantíssimo de interesse dos civis e não somente dos militares. Por isso, os autores Octavio Amorim Neto e Igor Acácio propõem a carreira civil de especialista em defesa, algo a ser instituído no governo. Proposta esta interessante para incentivar o estudo civil da defesa nacional por especialistas. Além disto, eles sustentam a necessidade de organização civil do controle do sistema de defesa nacional.[4] Por outro lado, há riscos para a institucionalidade das forças armadas em decorrência de abusos presidenciais, isto é, a instrumentalização política pela Presidência da República para fins político-eleitorais. Nesta hipótese de cooptação das forças armadas pelo Presidente da República para fins político-eleitorais haverá desvio de finalidade a ser devidamente apurado pelos órgãos competentes como é o caso do poder legislativo e poder judiciário. Além disto, práticas de promoção pessoal pelo Presidente da República, a partir da exploração do prestígio das forças armadas representam atos de improbidade administrativa. Por isso entendo, inclusive, plena necessidade de reforma do Gabinete da Segurança Institucional da Presidência da República, de modo a alcançar a desmilitarização, para evitar relações de proximidade tóxica entre Presidência da República e as forças armadas. A segurança institucional da Presidência da República pode perfeitamente ser liderada por civis, sob equipes civis e militares. Ressalte-se que as forças armadas submetem-se ao controle parlamentar, jurisdicional e pelo tribunal de contas da União. Assim, cada ato de nomeação pelo Presidente da República de agentes militares pode ser caracterizado como ato de improbidade administrativa se houver dolo e culpa e se houver desvio de finalidade. Além disto, a mídia melhorar a cobertura de temas relacionados às questões relacionados às forças armadas e defesa nacional. De todo modo, é importante que as forças armadas adotem um código de autocontrole, isto é, de autocontenção, para evitar riscos de contaminação política dos quartéis. O uniforme militar não pode ter utilização político-partidária. Imagine-se o risco de termos cabos, sargentos, tenentes, generais, coronéis e almirantes políticos? Se todo soldado resolver agir politicamente dentro dos quartéis o que sobra da unidade da corporação militar?
No século 20, a principal divisão ideológica foi entre capitalistas, comunistas e socialistas. De um lado, o grupo de países capitalistas, liderados pelos Estados Unidos. De outro lado, o grupo de países comunistas, liderados pela ex União Soviética. Ora, imagine-se que as ideologias adentrem dentro dos quartéis? O que teremos? Debates infindáveis entre direita e esquerda, entre outras forças políticas. Teremos generais, coronéis, capitães, tenentes, sargentos capitalistas de um lado? E de outro lado, teremos generais, capitães, tenentes comunistas? Teremos generais de esquerda e de direita? Nada contra generais e/ou capitães capitalistas e comunistas e/ou socialistas. Um “capitão” com ambições políticas, ganância e espírito de enriquecimento pessoal, pode perfeitamente se retirar das forças armadas e vir a fazer sua vida profissional fora dos quartéis. E o Brasil, intensamente polarizado, divide-se, de um lado, entre movimentos anti-petistas e anti-lulismo, e de outro lado, movimentos do bolsonarismo. Ora, estes dois movimentos já contaminaram as forças armadas? Acredito que esta bipolaridade política é nefasta para o País. É fundamental a construção de uma terceira via, para além da extrema direita.
A questão é que a ideologia política não pode adentrar as forças armadas. A propósito, o tenentismo no Brasil foi inspirado na ideologia fascista de Benito Mussolini da Itália, o qual tinha simpatizantes nas forças armadas. Nos Estados Unidos, movimentos civis, diante dos excessos praticados por agentes policiais, chegam inclusive a reivindicar a dissolução das forças policiais. Em casos extremos de intensa polarização social, mesmo no Brasil poderá haver movimentos que advoguem a dissolução das forças armadas se não as mesmas não mantiveram sua isenção diante das disputas políticas em relacionadas aos governos. Ora, em um regime democrático, a corporação militar deve ser apolítica, isto é, sem nenhuma preferência política por se tratar de instituição de estado. E, ainda que o regime econômico no Brasil seja o capitalismo, por óbvio, que agentes militares não vão ignorar as deficiências do capitalismo no que tange à desigualdade social e a distribuição de renda. No Brasil, há milhões de pessoas nos exércitos de pobres, desempregados, famintos, idosos e doentes. Por isso, se adotada unicamente uma política de segurança baseada na violência estatal para combater a violência social não haverá a pacificação social. O estado crônico da segurança pública não será remediado pela atuação das forças armadas. Para além das medidas de força são necessárias públicas de inclusão social, para remediar os danos colaterais do capitalismo. Por outro lado, em nações democráticas, há o equilíbrio de forças entre as forças armadas. Por isso, países desenvolvidos, com fortes economias nacionais, projetam seu poder naval e seu poder aéreo. Neste contexto, o exército tem seu poder militar, porém há investimentos de defesa no poder naval e no poder aéreo. No âmbito da América Latina, os exércitos assumiram influência política significativa sobre os governos, a sociedade civil e vida parlamentar. A influência militar na política dos países latino-americanos é ainda um fator a ser analisado, inclusive há, infelizmente, elementos militares antidemocráticos.
A militarização na política e vida parlamentar do País não é boa para a democracia, tendo em vista o recente passado histórico. Além disto, a modernização das forças armadas no Brasil requer investimentos na projeção de poder continental e extracontinental, no poder naval e poder aéreo. O Brasil é um país continental, logo sua força naval e aérea é subdimensionada. Os Estados Unidos detém o poder militar, não somente por causa do exército, mas devido à sua força naval (navios, submarinos, com capacidade nuclear, com projeção de poder sobre o Oceano Atlântico e Pacífico), com capacidade de atuação planetária e sua força aérea (aviões bombardeiros nucleares e mísseis nucleares intercontinentais), também com projeção global. Além disto, o poder militar norte-americano é expresso pela força espacial (satélites militares, geointeligência espacial, armas antissatélites, etc) e pela força no espaço cibernético (comandos cibernéticos). Há novas tecnologias militares sendo empregadas pelos Estados Unidos.[5] Como geoestratégia os Estados Unidos adotam ações de contenção de outros países, com a utilização geopolítica de sua legislação. E mais, há táticas de rebalanceamento de poder, para fins e preservação do status norte-americano no globo. Deste modo, há táticas de balanceamento de poder nas Américas, Europa, Ásia e Oceania. Qualquer tipo de ameaça à posição hegemônica de liderança dos Estados Unidos é combatida com medidas de contenção de poder do país adversário, vide o exemplo das ações de redução da influência da China nas Américas e na Ásia.[6] A geoestratégia dos Estados Unidos em relação à tecnologia do 5G no Brasil tornou explícita a sua política externa de contenção da influência da China no hemisfério continental. Os Estados Unidos tratam o Brasil como área de manobra de seu entorno estratégico. Por isso, os Estados Unidos adotam medidas para a sua segurança nacional, com repercussão sobre o Brasil. No Brasil, há duas linhas clássicas de pensamento geopolítico no ambiente militar. De um lado, Mauro Travassos, representante da corrente de que a defesa nacional do Brasil deve ser feita de modo soberano, apesar dos Estados Unidos. De outro lado, o General Golbery, segundo o qual a defesa nacional do Brasil depende dos Estados Unidos. Segundo o autor André Roberto Martin: “… a geopolítica é tomada como guia para as decisões em política externa. No último sentido, que o que mais nos interessa, a divergência de opiniões é flagrante entre Travassos e o pensamento esguiano, liderado por Golbery.[7] Ao que o primeiro quer ver o Brasil protegido dos Estados Unidos, o segundo quer um Brasil protegido pelos Estados Unidos, o que não é, convenhamos, distinção de pouca monta, ainda que se leve em consideração a diferença de conjunturas em que se produziram os dois modos de pensar”.[8] Estas correntes de pensamento foram formuladas no século 20. Em síntese, uma parte da geoestratégia de defesa nacional do Brasil está alinhada aos Estados Unidos. Diferentemente, outra geoestratégica de defesa do Brasil é soberana diante dos Estados Unidos. Precisamos defender uma geoestratégia de defesa nacional, independentemente da vontade dos países líderes globais. Uma geoestratégia de defesa nacional baseada na participação de civis, fundamentada no pacifismo institucional, mas se preparada para a guerra se for necessária para se manter a paz. No contexto do século 20, no período da segunda Guerra Mundial, o Brasil, após flertar com o nazismo durante o período do regime Vargas, ficou ao lado dos Estados Unidos na guerra, ao encaminhar a força expedicionária para combater no front da Itália. A propósito, o Japão, após participar da segunda guerra mundial ao lado do nazismo, declarou seu arrependimento à militarização de seu país e seu governo. Depois, durante o período da Guerra Fria, diante da ameaça “comunista” houve o golpe civil-militar como forma de prevenção à ameaça comunista representada pela ex União Soviética. Na década de 80 do século, no hemisfério sul, houve a Guerra das Malvinas entre Argentina e Reino Unido. O Brasil, oficialmente, declarou-se neutro. Porém, na prática, contribuiu com a Argentina. A propósito, e curiosamente, o Reino Unido possui a sua maior “zona econômica marítima” no Atlântico Sul, em territórios ultramarinos representados por ilhas. Estas ilhas servem como pontos de coleta de sinais de inteligência no Atlântico Sul, bem como bases navais militares para as operações britânicas. Os Estados Unidos apoiaram militarmente o Reino Unido, principalmente com seus serviços de inteligência da NASA e NSA. O Reino Unido em sua operação militar utilizou-se de suas bases nas Ilhas Ascensão e Geórgia do Sul, inclusive encaminhou um submarino nuclear. Assim, navios, aviões e submarinos britânicos foram deslocados para o Atlântico Sul.
Em síntese, os Estados Unidos não seguiram o pacto de defesa das Américas no sentido de evitar uma ameaça extracontinental. No mínimo, os Estados Unidos deveria ter se declarado neutro no conflito. Agora, no século 21 precisamos de novas linhas de geodefesa do Brasil, alinhadas com a defesa nacional de modo a exercer a plena soberania. O Brasil precisa de um pensamento geoestraestratégico para além da doutrina “americanista” e/ou doutrina “antiamericanista”. O Brasil demanda, por se tratar de um país com porte continental, de uma doutrina geoestratégica, fundamentada em sua plena soberania econômica, tecnológica, militar e cultural. A percepção do poder geocultural do Brasil pode contribuir para sua liderança internacional. Há questões que envolvem a capacitação nacional no século 21, por isso as forças armadas não podem perdem tempo com questões de política doméstica. Do contrário, se for mantido este desvio de finalidade, a única conclusão possível que as forças armadas estão sendo utilizadas para legitimar governos civis. Ora, as forças armadas não podem servir como “avalistas” de governo com integrantes originários do meio militar. Se o forem, simplesmente, responderão solidariamente pelos atos do governo. Neste aspecto, as forças armadas terão responsabilidade política pelos resultados do governo. O Brasil não pode depender para sua proteção de outros países. Um país plenamente soberano é capaz de se defender. O Brasil não é o quintal dos Estados Unidos. O Brasil deve assumir uma posição de liderança regional e global, conforme seus interesses nacionais. A posição hegemônica dos Estados Unidos no hemisfério deve ser contrabalanceada por medidas ativas de contenção do poder norte-americano, mediante negociações internacionais. Aqui, vale lembrar as lições de Gilberto Freyre a respeito das fragilidades de um país que depende da atuação de seu exército: “A verdade, porém, é que o país onde o Exército seja a única, ou quase a única, força organizada necessita de urgente organização ou reorganização do conjunto de suas atividades sociais e de cultura para ser verdadeiramente nação. Nação desorganizada não é nação. E mesmo que o exército seja moral e tecnicamente primoroso; se é a única força organizada da nação, esta nação corre o perigo de transformar-se em simples cenário de paradas ou simples campo de manobras. É uma nação socialmente doente, por mais atlética que pareça”.[9] A defesa nacional deve ser pensada em camadas geoestratégicas: terrestre, marítima, aérea, espacial e cibernética. A proteção do Brasil deve ficar sob o encargo do Brasil. O país não pode ficar mercê de nenhuma nação estrangeira seja continental ou extracontinental. No pêndulo de forças geopolíticas, o Brasil não pode oscilar, ora de um lado (Estados Unidos), ora de outro lado (China), conforme os grupos políticos e/ou circunstâncias no poder. É fundamental traçar uma política externa de Estado, comprometida com os interesses nacionais. O país precisa desenvolver uma cultura de defesa nacional, baseada em sua plena soberania, de modo a conter a influência estrangeira, inclusive sobre suas forças armadas e sobre sua elite política e econômica. O Brasil, o “gigante adormecido”, o País do futuro, precisa acordar para sua realidade e para seu presente; desenvolver suas potencialidades internas, com a cooperação internacional, para além dos Estados Unidos e da China. Os dois países disputam a liderança global. Por isso, o Brasil precisa manter a equidistância saudável para não entrar em rota de colisão com nenhum dos dois países. Neste aspecto, o Brasil deve rever sua geoestratégia, principalmente no Atlântico Sul, de modo a buscar alianças extracontinentais. Talvez, um sistema de defesa Atlântico Sul seja mais adequado ao interesse geoestratégico brasileiro. Ao Brasil, evidentemente, interessa realizar parcerias com os Estados Unidos e com a China. Mas, há, também, outros países com os quais o Brasil pode realizar acordos de cooperação, inclusive no campo militar. Por isso, a aquisição de aviões militares da Suécia é um exemplo de alternativa geoestratégica. A fabricante dos aviões (SAAB) é também fabricante de submarinos e outros produtos de defesa. A partir daí, talvez seja possível estabelecer as bases para uma indústria de defesa contemporânea, mediante uma rede de alianças internacionais. Mas, não necessariamente o alinhamento automático do Brasil ao governo norte-americano é saudável. É possível adotar uma linha geoestratégia de defesa militar soberana, mediante a negociação de condições equitativas, em relações de confiança e troca comercial. Enfim, é fundamental para a defesa nacional o rebalanceamento de poderes nas forças armadas, com investimentos no poder naval e poder aéreo. Para, além disto, é preciso a percepção do pensamento geopolítico e geoestratégico de defesa nacional a partir da articulação entre a cultura civil e a cultura militar. Por outro lado, as forças armadas brasileiras carecem ainda de um choque de democratização. Para tanto, é preciso garantir o acesso de mulheres e negros aos cargos de comando das corporações militares. Ademais, é necessária a vinculação das forças armadas a mecanismos de maior controle democrático, bem como o estreito compromisso com o regime de direitos fundamentais, previsto na Constituição do Brasil. E mais, deve-se repensar o sistema de justiça militar, inclusive debater a respeito de sua extinção, afirmando-se a jurisdição civil para o julgamento de militares. Outro ponto a ser debatido na reforma militar é o número do contingente de pessoal. Talvez, uma medida interessante é focar em investimentos em equipamentos e tecnologias militares, ao invés da utilização de recursos públicos no pagamento de remunerações e pensões. Esta é uma tendência global das forças armadas nos países desenvolvidos: unidades militares menores, mas com tecnologias avançadas. Neste aspecto, o Ministério Público pode contribuir com o avanço no controle democrático das corporações militares, evitando-se práticas de abusos presidenciais na exploração do prestígio das forças armadas. Em destaque, é necessário o controle de atos de promoção pessoal do Presidente da República ao explorar a reputação das forças armadas. Neste aspecto, é fundamental a responsabilidade das forças armadas em relação ao controle de armamentos de uso militar. Este é um tema sensível que não pode ficar à mercê de exploração política. Armas militares não podem parar na mão de civis.
Além disto, é preciso acabar o regime de alistamento militar obrigatório, de modo a se prestigiar a liberdade os cidadãos. Igualmente, é necessário nova doutrina militar adequada ao século 21, adequado aos cenários de paz e de guerras contemporâneos, bem como de demanda por novas tecnologias. Em síntese, a preservação da natureza das forças armadas como instituição de Estado está vinculada à manutenção de seu etos apolítico e seu caráter apolítico. Ademais, a credibilidade e reputação da corporação militar, bem como de confiança pública na instituição, dependerá o respeito ao princípio do controle civil das forças armadas. Uma força armada não pode ser confiável para uma parte do povo e para outro não. Para ganhar a confiança de todas as forças armadas precisam ser imparciais e equidistantes do poder político e do governo civil. Talvez seja chegada a hora de uma reforma nas forças armadas, a fim de conter eventual corporativismo. A desmilitarização do governo é o primeiro passo. A democracia e a soberania eleitoral agradecem. Para um governo que pretende se alinhar à OCDE, no mínimo, o primeiro passo é promover a desmilitarização do próprio governo, respeitando-se o princípio do governo civil. Afinal, os países membros da OCDE adotam em sua plenitude o princípio do controle civil de suas forças armadas. Além disto, o regime de plena democracia liberal e ocidental, tal como é a narrativa de alguns membros do governo, é incompatível com a militarização do governo. O governo militarizarizado é incompatível com o regime democrático. A falta de respeito à democracia é sintoma de uma “fraqueza armada”. A melhor arma para a democracia é a efetivação do controle civil das forças armadas. A renúncia dos militares aos cargos civis seria uma iniciativa mais democrática e adequada à Constituição da República. A nação agradecerá; o povo brasileiro confiará mais na organização militar.
[1] Para aprofundamento sobre o tema, consultar: Forças Armadas e democracia no Brasil. A interpretação do art. 142 da Constituição de 1988 (organização: André Rufino do Vale). Observatório Constitucional, disponível na internet.
[2] Passos, Anaís Medeiros. Controlar os militares? Uma análise da dimensão de accountabity sobre a atuação doméstica das forças armadas no Brasil. Revista Brasileira Estratégica de Defesa v. 6, n. 1, jan/jn, 2009, p. 51-77.
[3] Faoro, Raymundo. A república em transição. Poder e direito no cotidiano da democratização brasileira (1982 a 1988). Organização de Joaquim Falcão e Paulo Augusto Franco. Record: Rio de Janeiro: São Paulo, 2018, FGV Direito Rio, p. 169.
[4] Neto , Octavio Amorim e Acácio, Igor. De volta ao centro da arena; causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro. Journal of Democracy. Vol. 9, n. 2 , novembro de 2020. São Paulo: Fundação Fernando Henrique Cardoso.
[5] Boothby, William. New technologies and the law in war and peace. New York: Cambridge, 2019.
[6] Spykman, Nicholas. America’s strategy in world politics. The United States and the balance of power. Routledge, 2017.
[7] Sobre o tema, consultar: Couto e Silva, Golbery. Conjuntura política nacional: o poder executivo e geopolítica do Brasil, terceira edição, Rio de janeiro: Livraria José Olympio, 1981.
[8] Martin, André Roberto. Brasil, geopolítica e poder mundial. O anti-golbery. São Paulo: Hucitec, 2018, 93.
[9] Nação e Exército. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2019, p. 28.